terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O SÁBIO E O REI - Heraldo Lins

 


O SÁBIO E O REI


O Rei o mantém na sua corte exatamente para ouvi-lo falar durante uma hora sobre qualquer assunto que ele achar que deve. O Rei não tem tempo para pensar, por isso delega as próprias preocupações para aquele cérebro alugado.  O pior é que cada dia ele tem que se superar, pois o Rei está aprendendo rápido e precisa manter-se ocupado com algo além das guerras e concubinas. 

As histórias são ouvidas, também, pelos representantes da religião, e qualquer deslize sobre o "sagrado", o sábio será preso. Na verdade, seu pensamento o escraviza, apesar de ele transitar livremente nos corredores do castelo. Não pode colocar nas suas histórias que a terra não é o centro do universo nem questionar o pagamento das indulgências. Tudo deve entreter o Rei dentro do já conhecido, aliás, qualquer inovação termina em masmorra. 

Em um certo momento o sábio pede para ser o bobo da corte. Há uma lei regendo a profissão de bobo que ele pode dizer tudo, desde que no final gere gargalhadas. Só que no primeiro encontro no papel de bobo, ele é demitido e quase é preso. Não havia graça alguma dizer que o Rei não é um representante de Deus na terra, e que o sol é o centro do universo. Ainda ofereceram o antigo posto, mas o sábio não suporta manter seus pensamentos encarcerados, e por isso leva seus pertences e familiares para a antiga moradia e continua a ser o que sempre foi. 

Agora terá que trabalhar como todos os aldeões para manter a família do Rei e seus assessores na mordomia. Que situação o sábio enfrenta junto à mulher que estava viciada nos bailes da corte. Os filhos também se revoltam contra o pai por não poderem nadar no lago nem assistir aula de pintura juntamente com as outras crianças do castelo. 

A dor de ver sua condição de miserável só não doeu mais de que a dor da fome. Não tinha de onde tirar o sustento daqueles que apostaram nele como provedor. A mulher dizia que não tinha como mais pedir uma quenga de feijão para a vizinha, uma mão de arroz ou mesmo uma corda de carne. Nem caçar podiam, pois tudo pertencia ao Rei e só a ele cabia a autorização do uso da floresta. 

O sábio teve a ideia de contar as histórias que vivenciou no castelo. A partir daí a fartura voltou. Cada ouvinte trazia um pouco do que produzia para saber como era a vida no interior do castelo. O Rei soube e mandou prendê-lo. 

E agora? Um explicador do mundo dentro de quatro paredes! Sua prisão era tão fortificada que só defini-la como quatro paredes não supria a intensidade da prisão. É necessário dizer que o chão era de pedras esburacadas, o teto de mais pedras, sem buracos, mas tudo de muita pedra. Era uma prisão muito difícil de se sair de lá. Uma prisão fria, escura que fazia jus ao nome de prisão. 

O sábio olhou de lado e disse ao narrador da história: pare de falar da minha prisão e cuide de achar um jeito de que eu saia daqui. Não tem como, disse o autor da história. Você está maior de que a minha criatividade, por isso só tem uma forma de terminar está narrativa. O sábio, como o nome mesmo diz, pensou que matá-lo não seria uma boa ideia, porque provaria que o autor não tinha capacidade de ir além de uma folha, nas suas criações. 

Foi consenso o sábio permanecer vivo e o foco narrativo seria mudado para a esposa. Sim, disse o sábio, mas olhe lá o que vai dizer da minha querida esposa. Eu pensei, disse o autor, em dizer que por não ter o que comer, a esposa do sábio se prostituiu, e todos os dias estava nas tabernas oferecendo seu vestido para ser levantado. Calma aí, disse o sábio. Assim é demais. Ninguém que ler esta história vai achar legal ver a mulher do sábio se prostituindo. Poderia colocar que ela organizou uma guerrilha com o intuito de salvar o marido das masmorras. 

É, pensa o autor, mas como ela irá conseguir dinheiro para arrebanhar soldados prontos para lutar? Lembre-se que ela está com dificuldades até de ter alimentos na panela, imagine fazer uma revolução. Revolução se faz com muito dinheiro. Que tal juntar as duas coisas. A mulher do sábio se prostitui com o intuito de fazer a revolução e salvar o marido. Eu não sei por que você quer que minha esposa se prostitua. Você deve ter alguma coisa contra ela ou está querendo me desmoralizar.  

Está bom, então vamos deixar sua amada cuidando da cozinha e vamos colocar sua filha na taberna. Coloque a sua. Mariinha tem aptidão para lecionar, jamais será submetida às fantasias de um canalha metido a escritor. Mas você é quem está preso, e, mesmo assim, mantém sua arrogância em querer opinar em  tudo. Lembre-se que eu fui conselheiro do Rei. O mesmo Rei que lhe aprisionou quando você falou a verdade. Tudo bem, então desisto e prefiro ficar até o final do ano quando o Rei será deposto e eu sairei daqui como herói. O que eu faço? pergunta o autor ao sábio, que de imediato responde: torça para que ele não dê um golpe até as próximas eleições, senão você será meu companheiro de cela. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02.02.2022  ─ 21:10





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