quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

HÁ ESTÁGIO PARA TUDO - Heraldo Lins

 



HÁ ESTÁGIO PARA TUDO


─ Um parágrafo pelo amor à Literatura ─ pediu-me a estagiária. Ela queria ser escritora e não tinha um parágrafo sequer para começar sua carreira.

─ Tem certeza de que não errou o endereço? ─  pensei em dissuadi-la, mas preferi ficar calado para não perder a oportunidade de viajar no mundo da criatividade estonteante que ela estimulava. ─ Está bem! Posso lhe ajudar com uma frase ─ isso foi o que acabei lhe dizendo.  

Concordou. Ficamos em silêncio por uns instantes, mas sua presença levava-se para outras inspirações, e a frase, nada de chegar.   

Sim! apontei a geladeira e lhe autorizei a tomar água. Fiquei observando-a caminhar saltitante em direção à cozinha. Enquanto ela, mudando de ideia, tomava suco, eu ficava imaginando o que diria para aquela deusa que havia lido o que escrevo e estava ali para extrair o néctar.  Ao mesmo tempo que era agradável sua visita, sentia-me acuado por estar sendo observado para posteriores diálogos em seminários. Minha reputação de homem respeitador estava prestes a ir por água abaixo. Todos os criados haviam saído para o feriado de Natal, e Papai Noel descido na minha chaminé com aquele presente. 

─ E aí, já pensou em algo? ─ agora ela desamarrava o cabelo.  Ao soltá-lo, seu cheiro veio me alterar ainda mais. Quis que ela falasse daqueles cachinhos dourados, os cuidados que tinha com eles... 

─ Que calor! ─ disse, amarrando-os ─ preciso cortá-los. Deixam-me com calor constante. Posso abrir aquela porta? 

─ Ah, sim, fique à vontade! ─ Riu. ─ Posso mesmo? 

─ Sim, sim! ─ ainda tímido e ofegante só me restava concordar.

─ Que vista linda ─ disse ao abrir a porta de vidro ─ Como eu gostaria de morar aqui! 

─ Eu também quero que você venha ─ pensei olhando para a tela do computador fingindo distração. 

─ Você pode fazer uma foto minha aqui na varanda? 

─ Sim, claro! 

Dirigi-me para segurar o celular que ela me entregava lentamente. Ficou ao meu lado mostrando-me as funções da câmera. Enquanto me ensinava, seu hálito chiclete de morango me deixava paralisado. Fiz as fotos. Inicialmente com roupas, depois abandonamos a sessão de fotos e fomos para outras sessões. Em uma das pausas, ela juntou-se toda e começou a chorar. Não queria que tivesse acontecido. Arrependeu-se lamentando que não conseguia resistir ao ficar perto de um homem. O resultado era sempre o mesmo. 

 ─ O que está te faltando, menina? ─ indaguei depois de fumar mais um cigarro. 

 ─ Queria ter aprendido a escrever, disse-me choramingando. Fomos para o computador, e, depois que lhe dei algumas instruções, começou a escrever: 

 ─ Um parágrafo pelo amor à Literatura... 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 05.01.2022     ─ 08:19



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