terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A ESCRITA FALA DA FALA - Heraldo Lins



No princípio era o som. Depois surgiu o registro. Desde então as duas formas, fala e escrita, passaram a se odiar. Planejando, sempre que possível, o assassinato uma da outra.

A fala defendia em palanques que ela já era o bastante. Registrá-la não passava de uma invenção de mentes debilóides. Dizia:

- Quem tem alto grau de inteligência consegue aprender e nunca mais esquecer, por isso, deixemos a escrita de lado. Ela atrofia nossa memória.

A escrita ressaltava sua importância sem desmerecer a outra. Seu argumento era:

-Precisamos registrar tudo para servir de conhecimento às gerações futuras.

Depois de muita peleja, a fala conseguiu derrotar a escrita e reinar sozinha no campo da comunicação. A partir daí, todos os registros escritos desapareceram como por encanto restando ao homem apenas a voz para se fazer entender.

Logo logo os carteiros começaram a sentir na pele os efeitos da mudança. As placas das ruas nada indicavam, nem nas correspondências constavam os endereços. Na semana seguinte os funcionários dos Correios foram demitidos. As cartas deixaram de ser escritas passando a prevalecer, com mais intensidade, o sistema de telefonia.

A euforia contagiou a população. Instigada pela fala, assembleias foram realizadas para discutir assuntos verbais. Já que o ofício circular foi extinto, mensageiros com DVDs a tiracolo passaram a ser os divulgadores das ordens superiores. Imitadores foram presos para evitar falsificações estilo ventrículo.

Nos banheiros públicos, pessoas perguntando em qual deles deveriam entrar. Certa vez um dos informantes passou mal e teve que se ausentar um pouco, exatamente quando uma senhora deparou-se com um marmanjo no banheiro das mulheres. Assédio sexual? É ou não é? Foram parar nos tribunais. Registrou-se a queixa em MP3, mas como os códigos penais estavam em branco, ficou o disse pelo não disse e o brechado pelo não visto.

Jornalistas passaram a se chamar vocalistas, mas os cantores protestaram na hora. Jamais iriam aceitar tamanho desrespeito. Houve discussão, gritos, sussurros, palavrões, palavrinhas, vários tipos de elucubrações verbais foram pronunciadas, e por sorte a fala escutou. Partiu para defender o seu reinado ameaçando cortar a voz de todos se não parassem com aquela cachorrada. Água fria na fervura. Não estava mais ali quem havia protestado.

Os apaixonados pela grafia, aqueles que até no banheiro liam, viram-se perdidos. Argumentavam que esses momentos de lazer tinham sido deles roubados, pois não conseguiam fazer àquilo sem a leitura de uma revista masculina. A crise psicológica fora tão grave a ponto de baixarem ao hospital. O médico de plantão receitou diazepan, mas entenderam Amazan, e lá foram eles, desorientados, para Campina Grande atrás do poeta popular.

A classe estudantil vibrava com a nova realidade. Agora, teria mais tempo para se alienar em frente à televisão. As fofoqueiras viram seu público crescer, e haja boatos. Quando a fala notou que estava sendo mal utilizada, pediu perdão à sua ex-inimiga, e tudo voltou ao normal.

A escrita, aproveitando o espaço, agradece aos leitores pelos minutos de atenção.

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