sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

SOU OU NÃO CHARLIE HEBDO? - Gilberto Cardoso dos Santos


Vendo as imagens chocantes do ataque à redação do jornal francês em 07.01.2015 e o slogan que quase de imediato foi mundialmente divulgado, pensei em ser Charlie Hebdo. Depois, li um texto partilhado por Leonardo Boff, não de sua autoria, intitulado “Eu não sou Charlie Hebdo”, com algumas ponderações interessantes. Resolvi aprofundar-me no tema, ter outras visões sobre o problema do terrorismo. Assisti um documentário sobre os ataques do Boko Haram, um grupo similar ao Al Qaeda e ao Isis que, apenas no primeiro mês de 2015 matou cerca de três mil nigerianos. A partir daí, comecei a ver mais claramente um outro lado. Vi que a charge, cujo significado é “carga” (devido o exagero que se faz nos traços), pode ter um peso muito grande na história, nem sempre positivo. No vídeo citado, Haruna Mshella, presidente de conselho paroquial, explica a origem do atual conflito vivido por sua gente:

“Tudo começou com aquelas caricaturas da Dinamarca, feitas por alguém que não conhecemos, nem sequer é cristão. De qualquer modo, em seguida começaram a vir a igrejas aqui e a assassinar os sacerdotes.”

Lembrei-me deste precedente na história das charges. O caricaturista dinamarquês, indignado com tantos entraves trazidos à democracia pelo radicalismo islâmico, expressou sua revolta através de charges do profeta Maomé. Isso provocou uma imensa revolta nos países islâmicos e uma reviravolta rotina de sua família. Teve que mudar-se para endereço desconhecido e até hoje não tem pleno sossego. Na verdade, correu um risco calculado. Conseguiu manter-se ileso até hoje, mas o que pensar sobre os incêndios em embaixadas e mais de 200 mortes consequentes? Caso as palavras de Haruna Mshella correspondam aos fatos, não devería ele também sentir-se culpado ainda que em parte pelo que ora ocorre na Nigéria? No caso do atentado francês, pessoas que nada tinham a ver também pagaram com a vida. Um dos cartunistas assassinados na França, já idoso, disse com louvável coragem estar numa fase em que já não temia represálias. Pergunto-me se ele não deveria ter levado em conta o risco que outros também correriam. Fico imaginando quantos que nunca leram esse jornal ou viram estas charges sofreram por causa delas. 

Mas se eu fosse um artista, consciente de que minha arte poderia resultar na morte ou sofrimento de inocentes, ponderaria muito antes de expressá-la. Não conheço todas as charges publicadas pelo famoso jornal e imagino que elas contenham uma mensagem que, em linhas gerais, não deva ser suprimida. Todavia, como falar ao entendimento de alguém que está cego pelo fanatismo e que, covardemente, poderá atacar a inocentes que pouco ou nada têm a ver? Confrontá-lo do modo mais agressivo, como num ato insano de vingança não me parece ser a melhor saída. Tenho o direito de atrever-me a dizer-lhe algumas verdades, buscar impor limites à sua intolerância, exigir meus direitos, mas deverei ponderar como fazê-lo, pois estou a tratar com gente movida por paixões obscuras, capaz de qualquer coisa. Uma pergunta perfeitamente cabível, norteadora da liberdade de expressão nesse caso deveria ser: O que fazer para limitar meus ataques à ala radical do Islã sem ofender aos moderados? Tem como batalhar contra tais inimigos sem multiplicá-los? Vi algumas caricaturas inteligentes, de imediato aprovadas, publicadas naquele jornal. Mas vi outras pouco ou nada criativas, puramente ofensivas. Deu-me a impressão que na falta de inspiração buscavam compensá-la com agressões fortes, ousadas, mais parecidas com demonstrações de coragem insana que de humor propriamente dito. Em referência ao atentado, o papa Francisco disse que a liberdade de expressão tem limites e que se alguém insultasse sua mãe deveria esperar um soco como resposta. Exemplo tão pessoal leva-nos a refletir sobre a necessidade que temos de levar em conta os sentimentos e a mentalidade de nossos interlocutores, principalmente quando o que lhes dizemos soa desagradável. Inteligência emocional, tato e empatia são fundamentais num mundo globalizado, de equilíbrio tão frágil.

Aplaudo a ferrenha defesa que a França, berço do Iluminismo, faz da liberdade de expressão e acho que só por isso eu deveria ser Charlie Hebdo. Mas quando vejo esse mesmo país condenar o comediante Dieudonné pelo fato dele se valer dos mesmos direitos ora defendidos, fica a dúvida se estão fazendo um uso coerente da liberdade de expressão. Em seus shows de stand up comedy, ele agride valores caros à cultura francesa. Apesar das ameaças, prejuízos e aprisionamentos parece cada vez mais disposto a atacar o que ele considera um uso hipócrita do direito de expressão. Graças a essa oposição, parece-me, é um monstro que está a crescer. Não será mais mais uma estratégia errada de combate ao terrorismo, a somar-se às muitas que França tem cometido ao longo dos anos? O futuro dirá.

Estarrecido com o assassinato de quatro importantes chargistas (e de mais 13 pessoas que só se tornaram objeto de comoção pela associação com os famosos), o mundo se mobilizou duma maneira que entrará para a história. Dias antes, em 16 de dezembro de 2014, terroristas muçulmanos do Talibã invadiram uma escola no Paquistão, deixaram 141 mortos e 131 feridos, a maioria crianças, mas na França e no mundo quase não houve alarde. Impressiona-nos como algo tão grave foi e continua sendo tão pouco divulgado. Não houve um ajuntamento de estadistas para protestar nem multidões nas ruas para dizer "nós somos os 3 mil massacrados da Nigéria, somos as crianças mortas na escola paquistanesa". Isso prova o quanto os seres humanos continuam a valer pelo que têm, pela posição que ocupam, pela localização geográfica em que vivem. A mensagem que a Europa e o resto do mundo deixam escapar é que não importa muito aquilo que os radicais estão fazendo em outras partes do globo, desde que os deixem em paz. Quanto à decisão da imprensa mundial em dar ampla cobertura ao acontecimento, tem a ver também com interesses corporativistas. Defender o Charlie Hebdo é defender-se. Mostrar a força do Quarto Poder e desestimular atentados aos  formadores de opinião são as grandes razões.

Por fim,  lembro-me do efeito positivo que as charges dinamarquesas tiveram na vida de vários muçulmanos. A ex-muçulmana Wafa Sultan, por exemplo, despertou a partir daquela caricatura. Ferrenha defensora dos ataques ao fanatismo através de caricaturas e outras manifestações artísticas, ela diz que o Islamismo precisa se abrir à critica assim como ocorreu com o Judaísmo e com o Cristianismo. Só assim ele evoluirá, diz ela. Daí minha vontade de ser Charlie Hebdo. Por estes esses e outros motivos, bate-me a dúvida se devo ou não vestir a camisa que parece ter uniformizado o planeta. O personagem Hamlet, em sua crise existencial, expôs o dilema numa frase hoje clássica. Também vivo uma crise de identidade diante de tantas cobranças e discussões em torno desse atentado. Ser ou não ser Charlie Hebdo, eis a questão. Mas estou aberto a críticas.

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