Em certa
homilia de maio de 2013, o papa Francisco disse algo que surpreendeu a muitos,
evangélicos e católicos:
“O Senhor redimiu a nós todos, a todos, pelo
sangue de Cristo: todos nós, não apenas católicos. Todos! “Padre… os ateus também?
Mesmo os ateus?” Todos!”
“Fomos criados filhos à semelhança de Deus e
o sangue de Cristo redimiu a nós todos! E todos temos o dever de fazer o bem. E
esse mandamento para todos fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz.
Se nós, cada um fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se nos
encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente criando uma cultura
de encontro. Devemos nos encontrar na prática do bem. “Mas eu sou ateu, padre.
Eu não creio… ” “Faça o bem e nos encontraremos lá.”
Percebe-se
certa dubiedade e um tom poético nas palavras do papa, mas a linha que predominou na imprensa é a de que o papa
teria dito que os ateus, se fossem bons, se salvariam.
Evangélicos
fundamentalistas ficaram indignados. A salvação não depende de obras humanas,
mas exclusivamente do sacrifício de Cristo, revidaram no púlpito. O papa
revelava uma ignorância bíblica espantosa, disseram alguns.
O próprio
Vaticano, dias depois, emitiu nota esclarecendo que “ateus ainda vão para o
inferno”.
Mas eu me
pus a meditar e a procurar por fundamentos bíblicos para o que o povo entendeu.
O papa, que já teve oportunidade de estudar as escrituras em suas línguas
originais não me parece tão ignorante delas. Talvez não dê às letras sagradas a
atenção que alguns religiosos gostariam que ele tivesse. O problema, talvez,
não esteja no desconhecimento da Bíblia, mas no excesso de conhecimento dela e
sobre ela...
Encontrei
a parábola do Bom Samaritano. Lucas 10:29 a 37. Nesta história, temos um homem
ferido, um homem caído à beira da estrada, sangrando. Passa outro homem de Deus
e depois outro e depois outro... mas nenhum toma providências para salvar o
moribundo. Provavelmente saem de consciência tranquila, pois o que têm para
fazer tem a ver com a obra de Deus. Seus álibis têm a aprovação do céu. No
fundo no fundo, porém, imagino que tentassem sufocar uma vozinha irritante que
tentava lhes dizer o que deveriam ter feito.
E é aí que
Jesus introduz a figura do bom samaritano. Este chegou e fez tudo e bem mais do que aqueles religiosos deveriam ter feito.
Os samaritanos, na época de Cristo, eram
tão malvistos quanto os ateus são vistos hoje.
Judeus e samaritanos não se falavam, como se evidencia no encontro de Jesus com
a mulher no poço de Jacó (João 4:11). Os
judeus costumavam fazer longas travessias para evitarem passar por perto do
território habitado por eles. Expressões de ódio e discriminação eram comuns às
querelas entre estes dois povos. Do ponto de vista judeu e bíblico, os
samaritanos detinham uma fé vã, diabólica, perniciosa. Jamais se veria um
rabino judeu admitindo que um samaritano pudesse salvar-se, ainda que bom.
Pois bem. Aquele
samaritano que entrou para a história como modelo seria tão condenável quanto um
ateu. O próprio Jesus teria dito que a salvação vem dos judeus, mas não negou a
superioridade do gesto daquele homem condenável do ponto de vista da fé.
Jesus não
falou de fé e o apontou como exemplo quando lhe foi perguntado “Quem é o meu
próximo?” O critério para a aceitação divina não foi sua fé correta, mas suas
ações concretas em favor de um carente.
Imagino
que Jesus chocou a liderança religiosa de seu tempo tão certamente quanto hoje
o papa choca a cristandade com estas palavras.
Esse papa
é um expert em gestos e discursos poéticos. Preferiu se espelhar no exemplo de
São Francisco, aquele que escandalizou a muitos quando disse que até os lobos
eram seus irmãos. Percebam suas intenções quando ele fala em ir criando a
cultura do encontro. Belo trecho de sua homilia!
Além
disso, suponhamos que um ateu, querendo aumentar sua margem de segurança,
resolva se esmerar na prática do bem. Não estaria ele manifestando um princípio
de fé? É isso o que o papa quer. Encontro de ateus e cristãos na prática do bem, não propriamente no céu.
É interessante pensar naqueles ateus que,
à semelhança de Betinho, do Fome-Zero, fazem o bem sem esperar a eternidade em troca. Sem temer o inferno, buscam não viver de modo egoísta.
Pergunto-lhe:
quem você escolheria para conviver: algum daqueles judeus que passaram longe do
homem ferido ou o samaritano que o socorreu? Herbert de Souza, o ateu, ou algum
religioso fanático que nada ou pouco faz pela sociedade?
Talvez
Deus pense de modo semelhante a nós e ao papa.