domingo, 13 de julho de 2025

ESCRITA EMPENADA NA LINHA TORTA

 


ESCRITA EMPENADA NA LINHA TORTA


No auge dos meus quarenta e poucos anos, diziam que eu era um romântico decadente que sabia escrever bem. As editoras me adoravam enquanto os números subiam. Minha foto aparecia nos jornais, redes sociais e até nas tatuagens de leitores fanáticos.

Eu misturava mágoas com alguns poemas depressivos para conseguir um bom resultado. Ganhava prêmios, cuspia na imprensa e ria dos escritores que tentavam posar de marginal só para ganhar curtidas.

Meu apartamento era um depósito de garrafas, livros e papéis amassados. Vivia sozinho, por consequência das mulheres que larguei nos anos de glória. Aquele emaranhado de companheiros descartáveis, davam-me a sensação de pertencimento, já que o mundo lá fora sempre me pareceu uma farsa encenada por idiotas felizes.

O problema é que o público começou a mudar, e eu continuei o mesmo. Quando tentei lançar meu último livro, ouvi de um editor: "Não dá mais. Ninguém quer saber de um velho alcoólatra reclamando da vida." Saí batendo a porta, fingindo desprezo, mas aquilo me doeu mais do que eu queria admitir.

Convites, palestras, autógrafos... Tudo desapareceu. Restou o bar da esquina, onde ninguém mais me reconhece, exceto o garçom, que já sabe meu pedido antes de eu sentar. A bebida virou vício, e esse vício transformou minha escrita num eco do que eu já fui.

Vendi os direitos de meus primeiros livros para pagar aluguel. Os antigos amigos morreram, e as pessoas mais jovens me veem apenas como um velho ranzinza, olhando a vida passar pelo retrovisor.

Um dia, tentei voltar às redes sociais. Postei um trecho de um conto inédito, que me parecia bom. Dois comentários: um dizendo “isso parece IA” e outro rindo com um emoji. Desliguei o celular e decidi que nunca mais voltaria para esse mundo que não me pertence.

Passei a escrever cartas em cadernos velhos para leitores imaginários só para continuar na ilusão de ser famoso. Nesses meus delírios, cheguei a tossir sangue, mas ignorei. Não tinha plano de saúde, e o hospital público me dá medo. Preferi ficar sem tratamento do que enfrentar filas com uma sacola de exames na mão.

As madrugadas foram ficando bem mais longas, e foi em uma delas que pensei em ligar para minha antiga paixão, contudo desisti. O que eu poderia dizer? Que tinha saudade? Que me arrependia? Era tarde demais. Acendi um cigarro e mal consegui fumar. Agora, leio meus próprios livros com uma certa vergonha e, em alguns trechos, começo a chorar.

O jornal literário, que costumava me citar, passou a falar somente dos novos escritores. Amargurado, decidi visitar feiras, bibliotecas... porém, quando encontrei uma das minhas obras, virando poeira na prateleira de um sebo, vomitei.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.07.2025 - 21h21min.

Um comentário:

  1. O narrador de Escrita Empenada na Linha Torta remete à figura do escritor decadente que, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, observa a própria ruína com um misto de ironia e melancolia. Assim como Brás Cubas narra a vida depois da morte com um distanciamento mordaz, o protagonista deste texto revive sua queda literária como um espectro de si mesmo, consciente do quanto a fama é efêmera. A crítica ao mercado editorial e ao culto às aparências revela um ressentimento profundo, não muito distante do que vemos em Charles Bukowski, especialmente em Misto-Quente, onde a marginalidade do autor também se transforma em trunfo e condenação.

    O declínio do personagem, marcado por garrafas, solidão e sarcasmo, faz lembrar a trajetória de F. Scott Fitzgerald em O Último Magnata, onde o brilho do passado contrasta com a frieza de uma indústria que não perdoa o envelhecimento ou a autenticidade fora de moda. O autor, agora esquecido e ranzinza, encarna a figura do gênio incompreendido que, como o poeta de O Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto, carrega em si a degradação de um corpo e de um tempo que já não encontra lugar no presente. A tentativa frustrada de reconectar-se com o público através das redes sociais apenas aprofunda a sensação de exílio existencial, como se a literatura já não fosse mais um espaço de refúgio, mas de rejeição.

    Por fim, o gesto de escrever para leitores imaginários lembra Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, no qual o protagonista, também marginalizado pelo sistema, prefere se refugiar no silêncio e na recusa. No caso do nosso autor decadente, a escolha de viver entre cadernos antigos e fantasias de glória mostra um apego melancólico ao passado, recusando o presente digitalizado e indiferente. Essa imagem final — de alguém que lê a si mesmo com vergonha — revela um dos retratos mais cruéis da velhice: não a morte física, mas o apagamento simbólico. Tal qual Gregor Samsa, em A Metamorfose de Kafka, ele acorda um dia irreconhecível para o mundo e para si mesmo, transformado em um ser que já não pertence a lugar algum.

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