Uma pergunta sincera é o começo de um diálogo
Aécio Cândido
Há poucas semanas, um amigo me distinguiu com uma gentileza incomum nos dias que correm: ele me perguntou o que eu achava da guerra entre Israel e o Hamas. Eu não sou nenhum especialista no assunto, não conheço as sutilezas da geografia do Oriente Médio e o que conheço da dramática história do povo hebreu devo à leitura precoce da História Sagrada, livro que resumia o Antigo Testamento da Bíblia Cristã, um dos raros livros existentes na minha casa. Era de minha mãe. Li esse livro por inteiro antes de completar onze anos.
Reagi sensibilizado à pergunta, porque hoje muito pouca gente se interessa pela opinião do outro. As conversas são monólogos a respeito de pontos de vista cristalizados. Ninguém quer saber da opinião de ninguém, mas todos querem expor sua opinião, o que equivale a responder ao que não foi perguntado, e isso dificilmente dá origem a um diálogo. O que começa como monólogo condena-se a terminar como monólogo.
A pergunta nasce da curiosidade, um sentimento humano de primeira grandeza, e quem faz uma pergunta de caráter pessoal coloca o outro, mesmo que momentaneamente, como o alvo exclusivo de sua atenção.
Pode parecer óbvio que quem pergunta quer saber. Mas, muitas vezes, não. Há gente que só se interessa mesmo por sua própria pergunta, a resposta não lhe interessa. Tanto que faz uma pergunta atrás da outra e não para, não tem paciência, para escutar a resposta. Conheço gente assim. Já prometi a mim mesmo, muitas vezes, não alimentar esse tipo de diálogo enganoso, de me fazer de desentendido ou de responder apenas monossilabicamente. Não consigo, o vício pelas palavras não deixa.
No entanto, quem pergunta, genuinamente querendo saber, abre-se para o universo do outro, para as muitas possibilidades da resposta, até para um “não sei” honesto.
O “não sei” honesto é fundamental ao diálogo entre quem quer saber. No jogo das aparências, a ignorância, o não saber é um grande pecado. Tão grande que inconfessável. No clima de permanente embate político em que mergulhamos, muitos se convenceram de que sabem tudo. Adquiriram saber sem fazer nenhum esforço intelectual, sem o estudo correspondente. Parece que a paixão política despertou na alma da nação uma inteligência coletiva adormecida. Seria cômico se não fosse trágico.
Nos últimos 6 ou 7 anos, assistimos no Brasil a uma explosão de inteligência e erudição inusitada. Gente que nunca foi de muita leitura passou, da noite para o dia, a entender de economia, de filosofia, de ciência política. Até mesmo de medicina, divulgando novas teorias sobre vacinas e outras práticas médicas consagradas. Deixaram de existir assuntos áridos e complexos. Os especialistas foram varridos do mapa, uma vez que, agora, todos são especialistas. Em tudo. Pedalada fiscal, um assunto antes restrito a economistas, contadores e juristas especializados em gastos públicos, passou a ser compreendido por qualquer cidadão na mesa de um bar ou no banco de uma igreja. Idem para competências do STF, papel constitucional das Forças Armadas e uma enxurrada de temas desse naipe.
Mas qual foi a minha resposta à pergunta do amigo? Respondi-lhe que, no meu entendimento, era uma guerra em que os dois lados estavam cobertos de razão. Israel perdeu seu território no primeiro século da Era Comum. Os judeus foram desalojados, tornando-se refugiados em diversas partes do mundo. Havia um povo, identificado por uma história comum, por uma religião e por uma língua, mas sem um território para chamar de seu. E isso por quase 20 séculos. Admiravelmente, mantiveram durante todo esse tempo a sua identidade, ainda que a população estivesse fragmentada, morando nos países mais diversos, em praticamente todos os continentes. E durante esses 20 séculos, foram expulsos de vários países, perdendo uma vez mais o lugar de morada: no século XII,, foram expulsos da Inglaterra; no século XV, da Espanha e de Portugal; no século XX, enfrentaram a política de extermínio do Estado alemão nazista e a expulsão de vários países árabes. Até que o mundo resolveu considerar o problema do povo judeu como um problema da humanidade e logo após o término da II Guerra Mundial, fazendo eco ao sionismo, movimento existente desde o século XIX, encontrar um território para o povo judeu. Um território que tivesse ligação com sua história e com a geografia antiga.
Ocorre, porém, que o território onde o povo judeu havia vivido há dois mil anos estava agora ocupado por novos moradores. E aí? Acordos teriam que ser feitos para que os antigos e os novos moradores pudessem ocupar a mesma casa.
Sim, o Hamas é um grupo terrorista, autoritário, mas sua existência se explica em boa medida pelo peso que grupos fanáticos mantêm na condução da política de Israel, insistindo na expansão de sua parte no território. Extremismos geram extremismos.
Disse a meu amigo que achava a situação quase insolúvel, porque ambos, um e outro lado, têm carradas de razão, mas boa parte dos envolvidos não reconhece a razão do outro. Do lado dos palestinos, o Hamas incluso, há gente que não reconhece o direito de Israel a existir como Estado, e do lado de Israel há gente que não admite a criação de um Estado Palestino. A diplomacia dos países mais influentes ajudaria imensamente se se mantivesse neutra. Se cada um toma partido, perde a possibilidade de ser escutado por ambos os lados e passa a fazer, ele também, parte do conflito.
Levado por essa conversa, retornei a um livro do escritor israelense Amós Oz, um dos intelectuais mais importantes da atualidade, falecido há uns 3 anos. O livro chama-se Como curar um fanático e reúne palestras proferidas em vários países. Até então não tinha atentado para o subtítulo do livro: “Israel e Palestina: Entre o certo e o certo”. Não tinha atentado, mas a ideia me ficara no subconsciente. Amós Oz, um erudito de grande envergadura, foi, nas últimas décadas, uma das vozes mais iluminadas a falar da relação entre Israel e Palestina e a dar combate ao fanatismo, em todos os seu matizes e incrustações.
Se na guerra a primeira vítima é a verdade, para o fanatismo o primeiro a morrer é o diálogo.
(Publicado no jornal De Fato ed. 6.853, ano XXIV. Mossoró, 6 de janeiro de 2024, p. 2. Espaço Jornalista Martins de Vasconcelos)
Aécio Cândido de Sousa nasceu em Cuité, na Paraíba.
Possui graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (1978), mestrado em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (1991) e doutorado em Sociologia - Université Laval (1996 - Quebec, Canadá).
Cândido Aécio, quando lhe dirigi essa pergunta foi com a expectativa de que obteria uma sensata e inteligente resposta, e foi de fato o que ocorreu. Tenho o privilégio de conhecê-lo "desde menino, desde pequeno" e quando quero citar alguém a quem admiro geralmente seu nome me vem à mente. Diante de intelectuais como você, cujas opiniões costumam ter embasamento profundo e são pautadas pela ética e pela empatia, sou todo ouvidos. Gostei da generosa resposta que então me deu e mais ainda desse texto. Alegro-me por haver percebido a sinceridade de meus propósitos e pelas palavras incentivadoras. - Gilberto Cardoso
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