segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A ARTE DE OUVIR



A ARTE DE OUVIR


Dirigiu por pouco mais de uma hora até chegar ao primeiro destino. Tem vaga? O homem virou o rosto para o lado, riu com ironia, vaga? Sim, você tem? Aqui o preço é até acessível, mas vaga... Tem um quarto com um ventilador que faz teco e acho que o pessoal que está chegando não vai querer. Ele ria diante da falta de profissionalismo do tatuado que balançava a cabeça dissimulando o prazer de poder dizer não. Muitas árvores em forma de túnel davam um ar mágico ao lugar, desmanchado pela gaiatice no atendimento. 

Voltando para uma outra pousada que havia visto ainda há pouco: estou fazendo uma pesquisa e gostaria de saber se há disponibilidade para hospedagem. A paulistana foi chamar a recepcionista que veio com uma amiga e um cão identificando-se psicóloga, mãe de dois filhos e em busca da estabilidade espiritual que não havia encontrado no consultório. Também faço atendimento e massagens, caso vocês precisem, é um serviço à parte. Faz um mês que estou por aqui depois da minha separação, disse ela enfatizando que preferiu dar um basta na sua infelicidade.

Na entrada da pousada, há uma capela de pedra com apenas quatro lugares para fiéis interessados em meditação sentados em cadeiras de balanço e ao lado de fotografias dos transformados em heróis de Uruaçu.

A comida foi peixe com molho de maracujá e mel, nunca antes saboreada. Ali naquela árvore tem uma mãe beija-flor com seu filhote. Venha ver! Eu gostaria muito, mas a preguiça não me deixa sair desta rede. A filha dos donos riu e entendeu que não podia interferir na tranquilidade dos hóspedes. 

À noite, saíram para a cidadezinha distante oito quilômetros. Conheçam a rua da xêpa, foi a recomendação da anfitriã. No percurso, muitas lombadas, uma igrejinha e gente sentada nas calçadas. Um portal indicava a rua dos barzinhos, restaurantes e fotos fazendo gente. 

Mais à frente, uma quadra de futebol era palco para meninas chutarem bola. Um homem com apito organizava os passes, não tão alinhados, e os rapazes permaneciam treinando do lado de fora. Uma mãe jovem segurava o seu bebê em pé no alambrado, quando uma bolada quase acerta o menino dando a ela um gol de olho dentro da alma do autor do chute. 

Um velho triste comia churrasco num canto da praça, numa mesa triste acompanhada de uma latinha sem graça. Deve ser mais um divorciado das boas relações humanas, pensou durante a caminhada ouvindo um jovem de voz aguda cantando canções feitas para o grave. 

Outro grandalhão, por trás de uma banca, vendia miniaturas de automóveis representando seu estágio infantil que teimava em habitar um corpo coberto de pelos brancos. No areal enorme, havia farristas fazendo de porta-malas bar caseiro e discoteca pancadão. 

Onde vamos jantar? De volta a pé, nenhuma vez foram interpelados pelo "boa noite família" tão comum onde se apela por clientela. Os cardápios ficam expostos em um suporte sem que se precise perguntar por eles, deve ser por isso que pessoas alfabetizadas falam menos. 

Pararam no restaurante com música ao vivo. Uma galega de vestido cor laranja, colado às formas, veio com o cardápio. Você viu que coroa chamativa? O marido não só havia visto como também imaginado o que ela estava insinuando com aquele vestido lascado de lado. 

Uma outra jovem mãe tocava e cantava suavemente até música internacional. Os papas da MPB foram destilados na sua voz macia transformando a rápida parada num consumo exagerado. A jovem cantora, com um decote provocante, teve que parar de cantar por alguns minutos até trocar a blusa molhada de leite. Estava em período de amamentação. 

A loira de vestido apertado fazia vídeos sem que ninguém pudesse desviar os olhos daquela provocante de cócoras perto do gato preto e branco. Deixe ela, disse para o bichano quando depositou comida para uma cadela freguesa. O gato entendeu a mensagem e saiu de perto. Será que é um robô? 

No outro dia, o dono do pomar, em frente aos chalés, disse que a loira tinha cinquenta e dois anos, fazia fotos sensuais para vender na internet e era apoiada pelo marido de cabeça raspada. De graça ainda é caro, pensou ele sabendo que há outros sites com meninas mais atraentes no ramo do convencimento corporal. Quanto aos assaltos, pouca conversa sobre alguns homens que apareceram mortos nos matagais depois da cotização dos donos dos empreendimentos turísticos.  

Os hóspedes fizeram o check-out e trouxeram na bagagem a informação dada pela própria auxiliar administrativa de que era bissexual, ela e o marido, e que se rolasse alguma prática fora dos padrões impostos pela cultura dos héteros, tudo acontecia na maior normalidade possível. 

Quem tenha ouvido que ouça, pensou ele enquanto dirigia de volta achando incrível essa forma de se dispor a saber dos mundos das outras dimensões humanas.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

São Miguel do Gostoso/RN, 22.01.2024 - 08h39min.


Um comentário:

  1. "A Arte de Ouvir" apresenta uma viagem com nuances pitorescas, destacando a busca por hospedagem e as peculiaridades de uma pousada. Convida à reflexão sobre a diversidade humana e a curiosidade em explorar diferentes realidades. - Gilberto Cardoso

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”