MUNDOS QUE SE COMUNICAM
No meio da madrugada, levantou-se para ir ao banheiro. Que dor de cabeça desgraçada! Ao olhar para o espelho, percebeu o quanto ficou envelhecida de ontem para cá. Deve ser por causa destas olheiras que não consigo um novo namorado novo, murmurou lembrando-se do pesadelo assessorado pelo barulho líquido da privada. Mesmo com vontade de permanecer sentada, veio-lhe a orientação do proctologista para não ficar por muito tempo naquela posição. Voltou para a cama sem nem imaginar que o corpo do seu ex-marido encontrava-se sendo examinado no instituto médico legal.
Foi bala dundum. O técnico assinou o laudo, colocou ele de volta na câmara fria e encerrou o expediente. Mas o que estou fazendo ali deitado? A alma do falecido teimava em permanecer no plano terrestre. Ao lado dele, as duas irmãs gêmeas se mantinham sérias com o rosto sem o sangue avistado nas últimas vezes. Outros corpos permaneciam para exame necroscópico, porém sem as almas reivindicando-os.
Naquele trabalho, não tão invejável, algumas mulheres sentiam-se mal em ter que lidar com a podridão inerente à profissão. Uma delas, recém-concursada, lembrava-se da época em que desfilava nas passarelas. Naquele tempo, eu tinha medo de todo tipo de cão. E era mesmo. Parecia que eles sentiam seu medo. Agora afastam-se quando ela passa. É devido às células de memória levando o cheiro de cadáveres, explicou um antigo colega que passou pela mesma situação.
Acordou por volta do meio-dia sem a cefaleia, porém indisposta. Naquele domingo chuvoso, gostaria de permanecer deitada se não fosse o apetite empurrando-a para a cozinha. Lembrou-se da grande paixão do ex-marido pelos pássaros. Na companhia de beija-flores, na área pergolada, preparou os seus costumes alimentares e sentou-se olhando para a pequena floresta que mantinha na cobertura do prédio. A cidade aos seus pés não a protegia dos pensamentos tumultuados.
Guardou a caixa de comprimidos no bolso para não esquecer de ingeri-los depois da refeição. Suas neuroses se manifestavam de um jeito diferente a cada dia. Na última semana, passou a enxugar os sabonetes quando acabava de tomar banho, mas já tinha abusado de tal procedimento. Ultimamente, deixava-os se desmanchando no piso molhado.
Nem sei se devo ligar o celular. Depois de tanta guerra, resolveu pelo sim. Mamãe, eu soube que papai foi assassinado!? A filha, do outro lado do planeta, havia entrado em contato. Leu as mensagens e disse que não estava sabendo. Há muito tempo que o casal não se via, inclusive seus contatos foram todos apagados. A única notícia dele é que doou seus bens para nós e que estava com viagem marcada para fora do país. Esperou a resposta imediata, no entanto a filha devia estar com algum cliente.
Ela trabalhava conduzindo pessoas para viagens astrais, regressão etc. Esse seu lado sensitivo puxou ao pai, e a mãe logo desconfiou de que quem havia lhe avisado teria sido algum guia espiritual convidado a aparecer no momento da prática da mesa branca.
Vou ligar para a polícia para saber. Momentos depois ela estava presente identificando o corpo. Lá está sua mãe fazendo o de praxe. É, agora podemos ir, né papai, disse o filho que havia morrido afogado na piscina anos antes.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 07.03.2023 – 15h15min.
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