quarta-feira, 6 de setembro de 2023

AGINDO COM NATURALIDADE

 


AGINDO COM NATURALIDADE 


Finalmente viu seu sonho se realizar. Esse peste recebeu o que merecia. Levantou o vidro do carro e arrancou sem despertar suspeitas. Calma, dizia para si mesma. De volta ao teatro, sorriu para os que se encolhiam para que ela pudesse voltar ao seu lugar.

O bilhete do espetáculo estava bem guardado, caso precisasse provar onde estivera na hora do crime. Nenhuma suspeita poderia recair sobre ela, salvo ser testemunha identificada como a ex-mulher do morto. Esta névoa no palco realmente existe ou é produto da minha imaginação? Só se sentiu novamente integrada à humanidade quando saiu junto com os demais espectadores.

Sentou-se no banco da área de convivência. Com licença, acomodou-se uma outra pessoa ao seu lado. O que achou do espetáculo? Fingiu estar digitando para dar tempo a ir se acostumando a ser mais dissimulada. Gostei! Voltou a atenção para a tela apagada. Seu telefone está com problema? Quando chegar em casa eu o coloco na tomada. Se quiser, eu tenho carregador aqui na bolsa. Não, obrigada. Levantou-se e saiu preocupada. Será que já estão à minha procura? Fumou dois cigarros, demoradamente, na área reservada. 

No vazio do espaço, pegou-se enxugando as lágrimas. Sua raiva havia passado ao se lembrar do nascimento da filha e dele corujando a cria na mais alta plenitude de macho alfa.

Agora uma nova página na sua história começava a ser escrita.  Qual será a reação da filha logo que souber? Pensava sobre, quando já estava se dirigindo para o apartamento. Vou ter que agir do mesmo jeito de sempre. Boa noite! Esta encomenda é para a senhora!

Subiu no elevador lendo a correspondência. E agora? O ex-marido pedia desculpas por tudo, inclusive que estava deixando o país e uma declaração doando os bens para ela e a filha. Ficou paralisada ao perceber a data de ontem quando ele se redimiu por escrito.

Passava sabão no prato quando o telefone tocou. Nosso time ganhou! Vou liberar a portaria. O falso entregador de pizza recebeu o combinado pelo trabalho executado e deixou a caixa para enganar as câmeras. Não está faltando nada? Nem sobrando. 

Fechou a porta e foi assistir as notícias do corujão. Homem morto na praça ainda não foi identificado. Fixou o olhar naquele cobertor estendido em cima dele. Muita gente passava, olhava e seguia seu caminho. Há um senhor aqui que disse conhecer a vítima. Ele sempre visitava a minha banca de jornais. Sei pouco sobre ele, mas parece que morava sozinho. Ela também estava solitária. Às vezes sentia falta da filha, e quando fazia uma ligação quase sempre caia na caixa postal. 

Os cinquenta mil pagos à pistoleira não ia lhe fazer falta, já  que há algumas semanas vinha guardando as sobras do caixa. Poderia ter aproveitado para ir viajar, mas seu impulso vingativo não deixou que usufruísse das benesses do perdão. Adormeceu umedecendo o travesseiro.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 06.09.2023 – 20h06min.



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