CURIOSIDADE ANATÔMICA
Queria uma carta mais comprida da próxima vez, foi o que desejou ao terminar de ler a que havia recebido há pouco do noivo que estava no front da guerra. Ali, todas as verdades já tinham sido esgotadas e ela ficava dias e noites esperando a próxima chegar para se entreter durante o resto da semana.
Alguém passou a cavalo indo se juntar aos demais que haviam sido convocados. Obrigado pela água. Vem de muito longe? Algumas léguas além daquela montanha. Seu semblante sério a deixou também pensativa sobre a realidade das baixas que vinha acontecendo do lado de cá. Precisava de algum ânimo para continuar a tricotar parte do enxoval. O senhor é casado? Moro com minha mãe velhinha num rancho solitário. Se encontrar alguém desta região pergunte se me conhece. Entregou-lhe um bilhete feito às pressas com os nomes a quem se referia. Quando voltar, passe por aqui para repetir o café.
O homem esporeou o cavalo até ficar encoberto pela vegetação. Ela permaneceu olhando-o sem querer acreditar que nunca mais o veria. Se o noivo morrer em combate... nem quer pensar nessa possibilidade, mas logo retoma a consciência que terá que se desfazer do que estava sendo feito a duras penas. A tradição manda ser assim sob o risco de ficar encalhada.
Venham almoçar! A voz de comando da mãe a fez voltar à realidade. Com a escassez de homens, não terá tantas chances de se casar como tinha antes de começar o conflito. Chegue! Tempos atrás, nem gostava de batatas, agora, com os produtos sendo confiscados para os soldados, teve que se adaptar à tristeza de um cardápio com pouca variedade.
Por que está chorando? Quando vejo um homem indo, tenho medo de que o meu não volte. Tempos atrás, havia recusado alguns pedidos de casamento. Como fui tola em acreditar nas histórias de príncipes e princesas com um final feliz, pensa enquanto mastiga devagar tentando manter a esperança de ficar saciada.
É uma casa com cinco mulheres. Seus irmãos e pai foram convocados e elas se revezam nas fantasias de quase adultas prontas para a gestação. Cada dia é uma eternidade de espera. Algumas brigas comuns entre irmãs, não as impedem de sentirem o marasmo do ermo.
Um tiro.
Uma concha cheia de coalhada está sendo retirada da vasilha no centro da mesa. A mais jovem, de quinze anos, está passeando com a colher na sopa em busca de um pedaço de carne escondido entre as verduras colhidas da horta salvadora. Ficam no silêncio quebrado há pouco pelo disparo. Entreolham-se com pequenas rugas entre as sobrancelhas. Vocês escutaram? O cão deixa o osso que estava roendo levantando-se sem latir e apressando-se para chegar ao terreiro. Mais um disparo motivou à mãe a subir as escadas para o sótão junto com a filha mais velha. As outras correram para o alpendre. A comida deixada na mesa permanecia com a metade ainda morna.
Elas nem sabem que dos três irmãos, dois já sofreram baixa. O pai está ferido na enfermaria e o outro foi mandado de volta por ter perdido um braço numa explosão. Todas as correspondências são confiscadas antes de chegarem ao destinatário, por isso o comando mantém um departamento exclusivo para produzir notícias fantasiosas sem mencionar o perigo de grupos de salteadores na região.
Ao longe, avistam dois cavaleiros perseguindo o homem que havia passado há pouco. A casa tem um alpendre rodeado de verde com uma cisterna ao lado do telhado da bica. Algumas poucas rezes no pátio permanecem soltas mantendo as cabeças em direção aos três galopantes. Um dos salteadores havia caído com o tiro ouvido há pouco, e os outros dois, sabendo que a garrucha não mais tinha munição, empreenderam a caçada.
As três moças do térreo fecharam as portas e janelas enquanto o cão se posicionava latindo junto com os demais que se encontravam fora da casa.
Apesar da tensão, a noiva ficou pensando no momento em que seu amado colocou a língua dele na sua boca pela primeira vez. Era adocicada do vinho que ela recebia sem que ninguém soubesse sobre a transferência proibida pelo pai. Tempos bons aqueles.
O homem perseguido se aproximava quase já sem conseguir se segurar na sela de tão apavorado que estava. Sua vida estava em jogo, e com certeza iria morrer antes de ir servir à nação. As jovens ficaram juntas olhando pela fresta da porta principal. O calor produzido pelo abafado do meio-dia e o medo da invasão, fez com que se aproximassem uma da outra e, naquele ajuntamento de corpos joviais, as irmãs sentiram o molhado da excitação pré-estresse.
O cavalo da frente foi manejado para entrar na porta da sala que havia sido aberta quase por combinado, e o cavaleiro amigo avistou como única forma de escapar. Os outros dois decidiram continuar a caçada através do casarão, e, sem nenhum vacilo próprio de invasores, manejaram as rédeas com destreza. Ao passar pelo portal, as três, aparentemente inofensivas garotas, puxaram os gatilhos dos seus rifles detonando-os até se darem por satisfeitas. Parem!, gritou a mãe descendo a escada em que ficou de prontidão junto com a outra pistoleira. Temos que economizar munição.
Os cavalos foram colocados para fora e amarrados nas pilastras do alpendre. Aqui estão as duas balas que você gastou limpando nossa área. Entregou ao homem e pediu para ele se retirar. Ali era uma casa de respeito e não ficava bem ele permanecer, apesar dos perigos que rondavam a região. Mesmo sabendo das ameaças, vou continuar a caminhada, agora com mais atenção. Obrigado pela nova arma, e quando eu voltar, devolvo-lhe e peço uma das suas filhas em casamento.
Logo que o homem saiu, a mãe tomou os comprimidos do seu tratamento deixando a cargo das filhas dar fim aos corpos ali ensanguentados. Qualquer novidade, já sabem como proceder, disse a matriarca voltando para o posto de observação onde sempre tirava a sesta.
As meninas despiram os mortos e explicaram, às mais novinhas, como funcionava as partes externas do sistema reprodutor masculino que logo foram destroçadas pela matilha de cães famintos.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 02.08.2023 – 17h55min.
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