domingo, 1 de janeiro de 2023

VISITANDO OS MEANDROS DA ETERNIDADE - Heraldo Lins

 


VISITANDO OS MEANDROS DA ETERNIDADE 


O fato é que cheguei ao céu e São Pedro me perguntou em que  eu me ocupava na terra. 

Ao dizer que servidor público tinha sido meu mister, a alma de Gandhi caiu na gargalhada. Disse-me que eu havia perdido meu tempo em ficar marcando o tempo para cumprir o tempo. Fiquei acanhado, logo eu que sentia orgulho de ter conseguido o emprego através do meu esforço, ouvi, daquela alma sábia, que o importante é o que se faz em prol do bem comum. Mas eu fiz isso mesmo! Outra gargalhada, dessa vez foi de Martin Luther King discursando que eu apenas fiquei reforçando a desigualdade de forma legalizada. 

Desculpe-me, eu estava só brincando, na verdade fui o inventor do avião. Tiveram que algemar uma "alma de bigode" devido a raiva que ela ficou de mim. Disse-me que eu era um impostor e que deveria já descer direto para o fogo. Calma, disse Pedro reconhecendo em mim um negacionista igual a ele. Vamos dar mais uma chance a esse santo homem para que possa ficar por aqui. Eu não sabia, mas no céu eles estão fazendo vista grossa para ver se preenchem as vagas. Abanque-se e conte a sua verdadeira história, sem pressa, afinal temos toda a eternidade para ouvi-lo. Trouxeram uma cabeça numa bandeja para me acusar de ter namorado mulheres diversas. Só no papel, Judas pulou em minha defesa. Espiritualmente elas permaneciam solteiras e muitas tentaram apenas conseguir um provedor para suas crias. Abraçou-me e percebi que ele queria meu voto para escapar da crucificação, pois fiquei sabendo que o seu julgamento havia sido anulado. Eu cheguei exatamente no momento em que estava sendo feita uma revisão geral, e por ter tempo sobrando, pedi para ver um filme. Você só pode reprisar, pois sua memória não consegue absorver outras formas de experiências, apenas as que foram vivenciadas enquanto estava preso ao invólucro da alma.

Prefiro ser coroinha do que assistir novamente uma película, respondi querendo fazer "média". Nem isso, porque na sua ficha diz que até sobre a primeira comunhão você ficou questionando. Se vocês sabem tudo sobre minha vida, porque perguntam? É para saber se você sabe mentir bem e é bom de fofoca para, dependendo do seu desempenho, voltar lá e fundar uma igreja. Puseram-me a escrever  num grande livro, e o que ia saindo durante o deslizar da caneta era só o que eu não queria que soubessem. Fiquei perturbado ao ler anotações de uma vida medíocre com uns bate-bocas com a mulher. Eu ia citar Santo Agostinho, mas quando olhei de lado vi ele jogando cartas, apostando na mega sena e discutindo de forma fervorosa contra a teologia da libertação, então me contetei com o que era produzido.

Logo de manhã, um bocado de anjos veio me buscar para secretariar uma decisão sobre se mentir era ou não pecado. Muitos dirigentes que apoiaram o nazismo e a escravidão disseram que essa institucionalização da maldade só foi possível graças ao desvio da verdade, dessa forma seria melhor tirar esse assunto da pauta. 

Percebi que ninguém queria saber disso, o que importava era a reunião em si. Lá é muito monótono, e qualquer novidade é o bastante para se tornar uma festa. Eu doido para receber gratificações extraordinárias pelo serviço prestado, fui avisado que não havia nada para se comprar por lá, tudo é zero oitocentos, pois basta o criador dar um peteleco que tudo é criado. Há um ministério do mistério para atender as almas que não entendem o processo de desencarnar. Até estavam querendo tirar esse nome "desencarnar" para não se assemelhar com desossar, entretanto até o próximo milênio não há previsão para que essa sugestão seja votada. Tentei, acostumado com o serviço público, ser auxiliar de gabinete. Marquei uma audiência com o chefe, porém o doutor estava muito ocupado em recolher as oferendas que fizeram para Iemanjá.

Visitei o cemitério de lá e constatei que serve apenas para que seja visitado no dia de finados, e lá é bom porque os próprios mortos se visitam uns aos outros. Perguntam se tem mais alguém enterrado ali, coisa que nem precisava perguntar, pois todos ficam batendo papo sentados na mesa, é isso mesmo, em cada cova há uma mesa posta onde se toma suco de nuvem com vento quente. Esse último ingrediente foi uma parceria que Judas fez com o inomimado para ser o fornecedor. Lá os assuntos giram de quando se era vivo. Eu só não entendi foi dizerem que bom era naquele tempo que ficavam estressados até com uma diarréia. A cobertura da cova é feita de algodão doce colorido de acordo com a preferência do finado.

Na Secretaria dos Cultos, o que se vê muito é concurso de piadas.

Quando eu estava escutando piadas sobre Mateus, chegou um senhor do purgatório com uma barriguinha estufada apoiando-se em uma bengala de ouro. Caifás dei-lhe um empurrão, tomou a bengala e correu. O velho disse: e eu achei que aqui não tivesse ladrão, foi quando Abel interferiu dizendo que aquilo fazia parte do treinamento para saber se a pessoa tinha aprendido a se desapegar dos bens materiais. O velho desceu foi a ladeira. Chegando lá encontrou o porteiro Mata-Borrão com um tridente esperando-o e perguntou-lhe já sabendo a resposta:

– Você é o velho da bengala de ouro?! Nem precisa responder. Aqui se pergunta sobre tudo, afinal é o nosso papel perguntar. Ficará no quarto do fogo frio. Lá, você será servido por Napoleão e Josefina. Quem é Josefina? Aquela das pernas finas. Hehehehe... 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 1⁰.01.2023 - 09h49min



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