SUCESSO ALCANÇADO
Toda manhã, ao lado da cama, um violento par de chinelos é algemado aos meus pés para ser domesticado no passadiço da casa. A luz branca e forte da janela açoita meus olhos tentando ofuscar-me, custe o que custar. Às vezes são pingos torturantes que tentam afogar-me nesse aquário cheio. Tenho que ter cuidado para não ser levado pelos furacões que entram pelas portas quebrando ossos e arrancando cabelos.
A vida aqui não está fácil. Pior são as agressões virtuais carregadas de medos e ansiedades durante a madrugada, e mesmo acordado, sinto a pressão trazendo imagens de um futuro criado pela assembleia geral.
Saio de casa tentando consertar um coração que está com arritmia e um cérebro cheio de mau humor. Além de administrar as ações externas, tenho que atender aos pedidos de ração que o estômago requer constantemente. É uma verdadeira batalha travada com a dor de uma bexiga cheia. Sobra pouco tempo para deleitar-me com o que é tido como racional.
O monstro das necessidades nunca dorme, significando dizer que sou escravo dele. Um refém que teve seus momentos áureos no início da construção, agora estou sozinho ao bel-prazer dos prazeres misturados com incentivos doloridos.
As serpentes nunca param de crescer. São répteis que ficam pelejando para conseguir segurar outros animaizinhos junto aos seus pés, e por isso tenho que decepá-los com lâmina todos os dias, e quando esqueço, os efeitos vêm em forma de desânimo.
Acho que serei derrotado, mas tenho minhas dúvidas se aceito ou não essa derrota. Ser derrotado é não poder mais manter tudo funcionando. A libido, a visão, audição, tudo requer manutenção, e isso o corpo teima em destruir enquanto me ocupo com o trabalho. O despertador toca dizendo que tenho que ir correndo buscar munição para barrar a degradação total.
O travesseiro fica reclamando que já não paro a cabeça em sua maciez. Os minutos correm empurrando-me para o abismo das responsabilidades. Tenho que saltar da cama trepidante depois das cinco. O dormitório precisa ser arrumado para as visitas que nunca chegam.
O espelho reclama da bagunça do rosto com serpentes sendo apontadas e gosma nos olhos. Em cima da escrivaninha, um computador exige meu tempo disponível para um bate-papo que nem sempre me agrada, entretanto faz parte do compromisso assumido com outras máquinas carentes.
Meu rosto inchado denuncia que tomei substâncias desagradáveis. O espelho reclama com razão, dizendo que não tenho jeito de ser diferente. Fico calado, pois qualquer coisa dita ou sentida pode ser usada contra mim.
A caixa do vazio está cheia, reclamando para si um conteúdo que a torne mais significativa, nem que seja pelo silêncio imposto pelo grau intenso da individualidade. Nunca fui capaz de mantê-la em um nível aceitável. Essa condição de nascença prende-me. Na maior parte do tempo, só me resta gritar de boca fechada. Aprendi que ficar vermelho de ódio não resolve, ao contrário, esvaziam-se o restante das forças.
Desisti do combate. Deixo o vento me levar de janela afora. Virei um átomo de poeira, e saio por aí sem destino. Uso a força da natureza em meu benefício. Caminho nas estradas ditadas pela rotação dos planetas. Sem ter definido o trajeto, paro na cabeça de uma humana. Ela é jovem e vai correndo com roupas apropriadas. Vem suor me molhar. ali perto habita caspas e outras montanhas de lixo que não me dava conta que existiam.
Olho os olhos admiradores passantes, não sei se me veem, mas acho que não. Sou muito pequeno para chamar a atenção. O bom é que não preciso mais correr igual a quem me transporta. Todas as preocupações com emprego e seus derivados, acabaram-se. Tirando esse molhado de couro cabeludo, está tudo bem. Não há como sair daqui tão cedo. Está confortável ter um transporte gratuito sem precisar de contrapartida.
Minha hospedeira nem sabe que estou a usufruir da sua força. Vejo que está entrando na água. Ondas de espuma levam-me para o esgoto. Aqui dentro é escuro com muita água misturada.
Para relativizar esse momento, tenho que me lembrar de quando fiquei reclamando de um quarto ventilado e claro. Poderia ter aproveitado mais as sandálias nos pés protegendo-me do chão frio. Ah, como gostaria de ir para o trabalho, ter que ouvir chatices, fazer as mesmas coisas que a rotina exige. Como era bom o silêncio do vazio que eu tanto reclamava.
Abro os olhos no grande lago onde fui jogado. Estou à mercê de insetos, pássaros e bactérias. Permaneço cheio de vizinhos barulhentos, e o meio em que me encontro não é nada agradável para quem tem seus sentidos funcionando. Não sinto cheiro, mas pela minha experiência, aqui exala odores fortes. Não vejo diferença de cores, entretanto sei que dejetos não têm cores agradáveis. Todos os habitantes daqui lutamos para nos infiltrarmos em um corpo sadio.
Fico sem ar, mas não importa. Agora é que tive consciência de que não preciso de ar para permanecer pó. Cheguei ao ponto máximo do sucesso. Agora é só usufruir.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 19.01.2023 – 04h56min
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