sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

GENÉTICA DESASTROSA - Heraldo Lins

 


GENÉTICA DESASTROSA


Observava, friamente, os outros meninos que vieram prestar homenagens ao amigo encontrado esquartejado. Há dois dias haviam brigado, e ele ainda se lembrava que quando sentiu seu nariz escorrer, correu para o pai viúvo que sempre o protegia exageradamente. Só quero seu bem meu filho, dissera o pai furioso por ele chegar em casa machucado. Aos quinze anos, já havia sofrido bastante vivendo com um pai bruto e sem uma mãe que pudesse lhe aconselhar educadamente.  

Acostumou-se a ficar debaixo da guarda de quem era respeitado pelas suas maldades com os animais que negociava. Sua profissão fora escolhida por gostar de ver sangue jorrar e, ainda de quebra, vender a carne. Andava armado com mais de um instrumento de trabalho, e na cidade ninguém ousava desafiá-lo. Não quis se casar novamente ou não encontrou quem o quisesse, o certo é que viviam os dois naquele casarão herdado dos avós materno. As tarefas de casa ficavam a cargo do garoto sob ordens ameaçadoras caso não aprontasse o almoço antes dele chegar do açougue.

Uma vez, o pai foi preso por ser acusado de matar um garoto, porém seu álibi foi uma vaquejada que participava na hora aproximada que ocorrera o crime.

O filho sempre foi muito obediente e calmo. Era um "menino" de procedimento exemplar e restrito ao convívio do lar. Num terreno, ao lado do jardim sem muro, cultivava. Na cidade, era exemplo de adolescente respeitador, mas quem mexesse em sua plantação, ele se transformava. Quando estava perto de colher, ficava de plantão dormindo ao relento para vigiar o que tinha conseguido com muito esforço. Tirando essa proteção exagerada para com as verduras e legumes, só elogios. 

Havia uma garota da mesma idade que o auxiliava naquele trabalho. Os pais vizinhos nem se importavam que ela estivesse fora da vista, pois o rapazinho tímido não representava perigo.

Estavam quase sempre juntos, isso sem muita anuência do pai do garoto que via naquela menina um descaminho para o seu futuro doutor, pois notava que ele a olhava com certa animação própria de quem está com os hormônios a mil, porém o interesse dela não passava de pesquisar enxertos. Certa madrugada, foi encontrada decepada. Apenas o corpo foi encontrado passando vários dias para que sua cabeça aparecesse dentro de uma caixa depositada na porta da igreja. Um escândalo para a pacata cidade que teve o chefe geral do comando discursando sobre a necessidade de encontrar os criminosos.


Alguns dias passados do início da investigação, o alojamento foi atacado com sacos cheios de sangue atirados não se sabe de onde. A porta e as paredes tiveram que ser pintadas, e logo o açougueiro foi chamado para mais esclarecimentos. Onde estava ontem à noite? Havia viajado para comprar gado na cidade vizinha e encontrava-se trazendo a boiada nas veredas da serra. Os vaqueiros que foram com ele, testemunharam a seu favor. 

O pai, de tanto ser chamado para esclarecimentos, começou a descarregar a raiva no ex-querido. Já não era como antes. Agora via seu herdeiro como um entulho decidindo não mais se importar que ele apanhasse dos outros na rua. Tinha muito com que se preocupar e aquele já estava bem crescidinho para precisar de um anjo da guarda. Que a amada falecida lhe perdoasse, mas iria construir outra família. Por várias vezes sonhara com sua ex-esposa, e nos sonhos ela sempre pedia para não deixá-lo sofrer, todavia ia ignorar o pedido, afinal já dedicara muito da sua existência para cumprir a promessa feita no leito.

Numa madrugada chuvosa, tentou sair da cama. Estava amarrado com o filho lhe olhando com aqueles olhos fixos da mãe. No outro dia, foram encontrados os corpos trajando roupas daquela que aparecia nos pesadelos dos dois.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.01.2023 – 05h37min



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