sábado, 21 de janeiro de 2023

NÃO É PASÁRGADA - Heraldo Lins

 


NÃO É PASÁRGADA


A vila das pousadas tornara-se próspera. Situada no entroncamento entre várias cidades, não custou muito para que aventureiros para lá se dirigissem. Os serviços duvidosos se espalharam com novos estabelecimentos sendo abertos para atenderem homens de “arribação”. Veio a COVID, e sobre o índice de contaminação ninguém deu notícias, mesmo as luzes coloridas permanecendo refletindo-se nos caminhões estacionados na madrugada. 


Uma estrada de ferro trouxe mais homens sedentos de “carne”. As franquias famosas instalaram-se dando um aspecto de metrópole do consumo, com galpões sendo armados no sistema pré-moldados que interferiram, bruscamente, na paisagem bucólica, de forma que quem passasse mais de um mês sem visitá-la, estranhava. 


As tropas de burros foram substituídas por metrôs, e mesmo sem muita necessidade, os dirigentes queriam “se mostrar”. A família tradicional, que “mandava no pedaço”, há muito amargava a discriminação cultural ouvindo que lá só existiam malucos. E para não serem tão diferentes dos normais, resolveram erguer uma estátua juntamente com um bondinho para a serra das peregrinações. 


As praias tiveram seus lotes supervalorizados a ponto de pescadores serem convidados para irem um pouco mais para lá, causando revolta em quem não estava acostumado com mudanças tão rápidas. 


Com suas praias alvas recém-descobertas, a ex-vila serviu de tema documentado por novos influenciadores. Radares, instalados nas descidas dos morros, contribuíam para sustentar o glamour através da velocidade reprimida com a pena do desembolso. Até as chuvas, antes torrenciais, amenizaram-se. Os ventos tempestuosos foram desviados por modernos equipamentos originados das ideias de Tesla. A nova tecnologia foi motivo para observatórios astronômicos se instalarem trazendo um surto de psicólogos querendo saber o porquê de pessoas tornarem-se desprovidos de malícia ao fixarem moradia ali.  


Quem fazia esculturas, ao chegar por lá, mostrava-se mais talentoso do que de costume e até os desafinados passavam a cantar ópera. No fundo dos grotões germinava água cristalina, e era dessa água que vinha a substância inibidora da maldade. Viver entre o mar e a montanha atraía novos moradores querendo respirar o ar também tido como milagroso. 


Eu cheguei por lá e fiquei admirado por não haver cemitério. Aqui não se morre, disse uma jovem belíssima. Perguntei-lhe por seus avós e ela disse que haviam se mudado de tanto sentir tédio querendo morrer e não podiam. Ela mesma, já contava com mais de seiscentos anos, e agora era que não tinha mesmo nenhum pingo de vontade de ir embora.  

O interessante é que não avistei nenhuma criança, sendo avisado que quem quisesse ter filho teria que ir para outro lugar porque naquele éden nenhuma mulher engravidava. A única explicação lógica à qual tive acesso foi a de um ancião com pele de bebê que disse que as células permanecem renovando-se com a mesma força e elasticidade como se o tempo ficasse suspenso. Ali era conhecido por triângulo das bermudas ao contrário. O ápice do vértice, disse-me sem que eu entendesse. 



Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.01.2023 – 11h48mi



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