O TEMPERO DA PENA
“Construir castelos de areia na beira do mar”, é muito parecido com o trabalho de quem precisa escrever todos os dias. A cada amanhecer surge uma página virada pedindo para ser escrita. Independentemente de ter assunto ou não, a obrigação transforma o escritor em um simples trabalhador cerebral.
Ao acordar, toma-se banho para tirar os resquícios dos sonhos ou pesadelos da noite anterior e começa o serviço de pregar, com cola eterna, as palavras soltas no chão. Estão espalhadas pela cozinha, quartos e salas. Algumas escondidas no cantinho do armário dão mais trabalho para achá-las porque só quem as conhece são as misteriosas lupas, mas isso não nos impede de buscá-las, custe o que custar.
Há palavras que imploram para brilhar na vitrine dos olhos de quem as lê, só que às vezes não passam de rascunhos. É como se fosse uma sopa de letras amolecidas feita exclusivamente para facilitar a degustação de quem se habilitar a continuar comendo até que as tampas dos “is” assumam a função de um ponto final.
Esse ponto é a raspa do tacho. O momento em que a degustação vai além do gosto de “quero mais”. Surge a esperança de alegria infinita, porém, na maioria das vezes, o alimento da alma traz o tempero da decepção. O fogo não acendeu, a panela furou-se, e quando não é isso, é a mão que colocou sal em demasia. São tantas as variáveis, que o chef precisa tomar a vacina contra o desânimo para poder continuar temperando os acertos e cuspindo fora as redundâncias.
Ninguém se transforma em um bom cozinheiro se não preparar comida diariamente. A prática também leva à decepção caso não se tenha consciência de onde se quer chegar. Não é só por aqui que as dúvidas persistem. Em todas as construções, há os atos falhos, aqueles que só quem entende é o próprio construtor. São compartimentos que nem deveriam ter sido planejados, e, na maioria das vezes, não há tempo para demoli-los já que a massa é aplicada tão rapidamente que as imperfeições só aparecem à luz da tradução.
Se demorar muito para concluir, até o gás começa a faltar, e é nessa hora que existe um risco maior da comida ficar crua. Servir um prato faltando os ingredientes das vírgulas ou excesso de pronomes retos, deixa um rastro empenado que nem com nivelador a laser se consegue alinhá-lo.
O feio na literatura passa pelo desconforto de agredir a linha de entendimento. São pequenas dissonâncias que nos faz perder o apetite. Ao cozinhar com fogo alto, corre-se o risco de queimar o fundo da alma e essa queimadura vem em forma de preconceitos reforçados durante a travessia da ideia.
É a mesma assimetria de uma pincelada a mais em um quadro, ou uma nota faltosa na melodia de um trecho musical. A relação vem diretamente medida pelo conforto ou desconforto do consumidor exigente que, de tanto enveredar por diversas experiências degustativas, vive de prontidão para jogar o prato na lata do esquecimento.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 14.12.2022 - 19h12min
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