Ensaio
sobre A Literatura Em Perigo, de Tzvetan Todorov
(George
Sand – Gustave Flaubert)
Liliane
Mendonça — 09/2022
Mais
densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a
literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de
concebê-lo e organizá-lo. (TODOROV, 2009, p. 23)
Tzvetan Todorov foi um filósofo e linguista búlgaro
que se mudou de Sófia para Paris após sua
graduação em Letras, em 1963, para aprofundar seus estudos literários.[1]
O escritor nasceu em Sófia em 01/03/1939 e morreu em Paris em 07/02/2017.
Em seu livro “A
literatura em Perigo”, Todorov faz reflexões importantes sobre literatura
resgatando opinião de especialistas em literatura clássica da poesia,
Renascença italiana, estética da recepção e arte pela arte, para
citar alguns exemplos. Entre suas reflexões está o fato de que na escola em vez
de conhecermos obras literárias aprendemos sobre o que os críticos literários
falam dessas obras. O autor comenta também sobre a mudança que houve ao longo
dos séculos na forma de pensar a literatura. Caio Meira, em sua apresentação à
edição brasileira, destaca que a filosofia socrática acusava a arte poética de
subversiva por um suposto poder encantatório da literatura, reconhecendo nela o
poder de intervir na formação do espírito das pessoas e até mesmo da realidade
como um todo. Para Todorov o perigo que ronda a literatura em nosso século é o
oposto disso, ou seja, não ter poder algum e por isso não participar mais da
formação do indivíduo. Caio Meira aproxima as reflexões de Todorov ao contexto
da educação no Brasil e, em alguma medida, da formação de leitores em nosso
país. Todorov reivindica que o texto
literário volte a ocupar o centro e não a periferia do processo educacional (e,
por conseguinte, da nossa formação como cidadãos), em especial nos cursos de
literatura.
Chamamos
a atenção para um pensamento que consta logo no começo do livro. Caio Meira afirma:
O perigo mencionado por Todorov
não está, portanto, na escassez de bons poetas ou ficcionistas, no esgotamento
da produção ou da criação poética, mas na forma como a literatura tem sido
oferecida aos jovens, desde a escola primária até a faculdade: o perigo está no
fato de que, por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com a
literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com
alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária.
(TODOROV,
2009, P. 10)
Para ilustrar sua
opinião sobre o ensino da literatura, Todorov cita, entre outros, o ensino da
física que, segundo ele, se debruça sobre suas leis e fórmulas, e nessa
disciplina é considerado ignorante quem não conhece a lei da gravitação
universal; enquanto em literatura aprende-se as teorias sobre ela, mas é
considerado ignorante quem não leu As Flores do Mal, para citar um
exemplo do livro. Segundo ele, os autores das obras literárias, quando lidos,
permanecem na memória dos leitores, mas os nomes dos teóricos acabam sendo
esquecidos. Certamente isso acontece porque alguns romances e poemas nos causam
uma impressão tão forte, um prazer tão grande que se tornam inesquecíveis para
nós, mais do que qualquer conceito sobre eles. Naturalmente, Todorov defende
que aprender sobre a história literária ou análise estrutural de uma obra
agrega conhecimento e pode ser útil ao aluno/leitor da obra, mas esse
conhecimento é apenas um meio de acesso, algo para ampliar os horizontes e não um
substituto para a compreensão do sentido da obra. Todorov afirma que o leitor
comum não lê obras literárias para se informar sobre o contexto em que foram
escritas, mas sim para tentar encontrar algo que enriqueça sua existência e
para que acabe compreendendo melhor a si mesmo, pois o conhecimento que vem da
literatura é um caminho que ajuda no desenvolvimento e na realização pessoal do
leitor. Para o autor, nas faculdades de
Letras, é natural que se ensinem as abordagens, os conceitos postos em prática
e as técnicas, mas as aulas do ensino médio, já que não se dirigem a profissionais
da literatura, não deveriam ter o mesmo conteúdo: “o que se destina a todos é a
literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não
estes últimos” (TODOROV, 2009, p. 41). No
que diz respeito ao ensino de literatura, Todorov ainda considera que:
A análise das obras feita na
escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os conceitos
recém-introduzidos por este ou aquele linguista, este ou aquele teórico da literatura,
quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da língua e do
discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido dessas
obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um
conhecimento do humano, o qual importa a todos. (TODOROV, 2009, p. 89)
Um dos destaques do
livro é a referência que Todorov faz à postura de Flaubert que ao defender a arte
pela arte reivindicando a autonomia da literatura, não esquece que sua
criação literária vem de seu conhecimento de mundo. Para Flaubert a verdade é
fundamental para que o texto literário seja considerado perfeito. De acordo com
Jean-Paul Sartre (1988, p. 599), Flaubert acreditava que ele mesmo poderia
discernir entre a boa e a má qualidade de seu trabalho e quando aprovava
completamente o que tinha escrito, o trabalho estava terminado. Não gostava de
sugestões para alterar seus textos, e não os entregava a revisores, para não
correr o risco de deixar o texto perder a harmonia e o ritmo que ele construía
a duras penas os escrevendo e reescrevendo obstinadamente.
No último capítulo do
livro, Todorov relembra um encontro importante da história literária, qual seja
a correspondência trocada entre George Sand e Gustave Flaubert. Embora muito
diferentes no modo de ver o mundo, a sociedade, a política e a literatura, Sand
e Flaubert trocaram, entre 1863 e 1876, cartas que são verdadeiros documentos
históricos de suas vidas e, em alguns casos, também da França oitocentista.
Sand e Flaubert eram amigos e ao ler a correspondência percebemos o carinho e o
respeito que os unia, sem deixar de notar as diferenças de opinião de ambos
sobre suas concepções literárias de que discordaram até o fim da
correspondência.
“Sand lamenta que
Flaubert não se mostre mais nos seus escritos” (TODOROV, 2009, p. 84), essa
afirmação pode ser confirmada em várias cartas, como nesta de 1875 em que
lemos:
Não se pode ter uma filosofia própria sem que ela
venha à luz. ... acredito que falta a você, uma visão mais
convicta e mais ampla sobre a vida. A arte não é somente a pintura. A
verdadeira pintura está, aliás, repleta da alma que empurra o pincel. A arte
não é só a crítica e a sátira. […] Quero ver o homem como ele é. Ele não é bom ou
mau. É bom e mau.[2]
(SAND, 1875 apud JACOBS, 1981, p. 511)
Sand conhecia bem
Flaubert, e cobrava dele por não o reconhecer em seus livros, para ela o que
ele faz é criar um autor distante dele, e acredita que ele tenta ser essa outra
pessoa intencionalmente. Ou seja, Sand não acha que Flaubert consegue realmente
se ausentar do texto. Para ela, ele apenas não se mostra muito e o pouco que
mostra não é reconhecível como ele mesmo. Todorov reflete que o que ela censura
nele é o fato de não deixar um espaço em seus romances para homens como ele, o
que acaba não mostrando fidelidade ao mundo real. Além disso, o quadro que
emerge dos livros de Flaubert não é realmente verdadeiro, pois nele haveria uma
traição à realidade já que representa apenas a face obscura do mundo, enquanto “A
verdadeira realidade, é a mistura entre o belo e o feio, o opaco e o brilhante.[3]” (SAND, 1876 apud JACOBS, 1981, p. 519).
Levando em conta a
afirmação de Todorov que representar a existência humana é o objetivo da
literatura, e que o autor e o leitor fazem parte dessa humanidade, não podemos
deixar de pensar que as reflexões de Sand a esse respeito são pertinentes. Para
Sand o objetivo da arte era a nuance, era importante mostrar a natureza humana
com as contradições que de fato existem nas pessoas (bom e mau). Todorov
esclarece que ela tinha consciência de que Flaubert assim como outros escritores
tinham mais estudo e talento que ela, mas ela tinha uma visão mais definitiva e
mais ampla da vida. Todorov ressalta: “a correspondência Flaubert-Sand foi
importante por versar sobre literatura, verdade e moral” (TODOROV, 2009, p. 83).
As divergências entre Flaubert e Sand são uma ótima forma de concluir o livro,
justamente por trazerem duas visões totalmente diferentes sobre a arte
literária. A discussão Sand-Flaubert, a respeito da escrita literária, traz o
ponto de vista não de quem ensina, mas de quem produz e pensa sobre a
literatura, buscando a relação leitor-escritor.
Referências:
JACOBS,
Alphonse. Correspondance Gustave
Flaubert-George Sand, Flammarion, 1981
SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille. Livros
1, 2, 3. Gallimard, 1988.
TODOROV,
Tzvetan. A literatura em Perigo. Tradução Caio Meira. Difel (Grupo Editorial
Record), Rio de Janeiro, 2009.
[1] Informações extraídas do site: https://www.fronteiras.com/descubra/pensadores/exibir/tzvetan-todorov — em 17/09/2022
[2]
On ne peut pas avoir une philosophie dans l'âme sans
qu'elle se fasse jour.
...je
crois qu'il manque [...] à toi, une vue bien arrêtée et étendue sur la vie.
L'art n'est pas seulement de la peinture. La vraie peinture est, d'ailleurs,
pleine de l'âme qui pousse la brosse. L'art n'est pas seulement de la critique
et de la satire. […]. Je veux voir l'homme tel qu'il est, il n'est pas bon ou
mauvais, il est bon et mauvais. (tradução minha).
[3] La vraie réalité, qui est mêlée de beau et de laid, de terne et de
brillant.
Obras traduzidas por Liliane Mendonça:
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