Quero lhes falar sucintamente sobre dois sacerdotes, elevados à categoria de monsenhores, portadores de grandes lições: Monsenhor Benvindo e Monsenhor Raimundo. Começo esclarecendo que, antigamente, quando um sacerdote recebia o titulo honorífico de Monsenhor, dado pelo próprio papa, era um indicativo do reconhecimento de sua relevância no trabalho pastoral.
O primeiro dos monsenhores, de nome Benvindo ou Bienvenu, aparece nas páginas de Os Miseráveis, obra de Victor Hugo. Você poderá conhecê-lo melhor lendo o citado livro ou vendo algumas das muitas adaptações feitas para o cinema. Recomento a de 1998:
Monsenhor Benvindo é figura chave no desenrolar da inteligente trama. Sem ele, a narrativa perderia força. De forma radical, buscava cumprir o ideal bíblico. Era um imitador do Cristo, seguia os passos do Bom Samaritano; era alguém que levava a sério o Sermão da Montanha. Como descrito pelo autor, "Era um homem para quem os ensinamentos cristãos de humildade e amor ao próximo não eram palavras ocas, mas normas de conduta que lhe davam, aliás, grande satisfação."
Destituído de vaidades, recusava-se a residir em luxuoso palácio. O espaço foi transformado em um centro hospitalar. Admirável era o espírito de renúncia e a disposição de ajudar ao semelhante.
Graças a sua genuína fé e atuação, foi capaz de impactar para sempre o coração de um criminoso - um homem que fugira da prisão após 19 anos de punição e correções infrutíferas, a quem o estado tornara pior.
Tão admirável é o personagem que não acreditaríamos ser possível existir alguém assim se não fosse pelo outro monsenhor, a quem conheci pessoalmente: Monsenhor Raimundo.
Tive o privilégio de conviver com ele; diversas vezes paramos para conversar, na escola e em sua residência. Emprestava-me livros e revistas. Tínhamos visões religiosas bastante diferentes, mas isso não nos impedia de dialogar amigavelmente.
Foi meu diretor na escola por ele mesmo idealizada e que teve o mais relevante papel na comunidade, o Instituto Cônego Monte, carinhosamente apelidado de A Escola do Padre. Jamais conheci um diretor tão empenhado. Quase onipresente na instituição.
Foi um homem que fez a diferença na educação, na espiritualidade local e em outras esferas sociais. Nos momentos de crise, não se limitava a rezar.
No dia 1º de Abril de 1981, intensamente chuvoso na região, o açude Mãe D'Água se rompeu em Campo Redondo e as águas rumaram para Santa Cruz, ameaçando fazer transbordar o Rio Trairi. A população que residia nas imediações precisava ser advertida com urgência. Precisava-se de alguém em quem o povo tivesse confiança plena para anunciar a iminente tragédia, pois se tratava do Dia da Mentira. Ele foi o escolhido.
Era noite já, cerca de 18h quando ocorreu a inundação. Graças ao seu aviso e apelo para que todos se retirassem a tempo, muitos foram salvos. Mais de mil casas foram destruídas pela enchente, mais de cinco mil pessoas ficaram desabrigadas, no entanto restava o mais importante: a vida. Apenas seis pessoas morreram.
Sua ação não parou por ai. Providenciou abrigou aos que a ele recorreram e, posteriormente, cedeu terras da paróquia para os desabrigados. Foi daí que, no outro lado da cidade, nasceu o Conjunto Cônego Monte, cujas ruas recém criadas receberam nomes de santos.
As vítimas do drama que hoje no Cônego Monte residem, lembram dele com respeito e gratidão. Dona Geni, por exemplo, morava no início da ponte que leva ao Paraíso. Suas filhas escaparam porque, quando se deu a enchente, elas estavam na escola. Nada restou na casa, além do vaso sanitário.
A cidade que tanto sofreu pelo dilúvio local naquele dia, a ponto de entrar para a história do RN como o lugar onde ocorreu uma de suas maiores tragédias, historicamente padecia, antes e depois, pela escassez de água.
Mais uma vez o Monsenhor Raimundo se revelou peça-chave na transformação do município. Num trabalho orquestrado com um outro monsenhor, o Expedito, lutou para que as águas da Lagoa do Bonfim beneficiassem a região do Trairi. Não foi nada fácil. Era como tirar água da rocha, à semelhança de Moisés, pois diversas eram as pedras no meio do caminho, sendo a principal delas a indiferença do poder público.
O auge de sua luta se deu em ano eleitoral. Colocou uma faixa na igreja matriz com os dizeres: "Adutora sim, voto sim. Adutora não, voto não.". Sofreu críticas por causa disso, mas suas (or)ações prevaleceram. Graças a isso, a partir de 1998 Santa Cruz pôde dar um passo essencial ao seu desenvolvimento. Ele foi, literalmente, um divisor de águas no Trairi.
Acerca do primeiro monsenhor, tenho uma historinha digna de sua atenção.
Numa madrugada em Digne, pequena cidade francesa, viu-se um homem rezando em frente à casa de Monsenhor Benvindo. Era Jean Valjean, cuja gratidão, pelo resto da vida, seria manifesta a partir daquele momento. Suas lágrimas, aparentemente infindáveis, contrastavam com o intenso frio. Eram lavas procedentes do vulcão da consciência. Mais uma vez ele havia pisado na bola, depois de ter traído a confiança de quem mais o beneficiara: o monsenhor. Mas quem ali se ajoelhou não seria o mesmo ao levantar-se. E tudo graças ao trabalho de reciclagem espiritual feito pelo sacerdote.
Acerca do segundo monsenhor, tenho também uma historinha edificante.
Uma mulher estava ajoelhada na igreja, diante do local onde jaz o corpo de Monsenhor Raimundo. Com que contrição dirigia suas preces! Lágrimas umedeciam seu rosto. Depois um dos filhos me explicou:
Jovem ainda, quando enviuvou, não sabia o que fazer para subsistir com seis filhos pequenos. Paupérrima, recorreu ao padre, que não se limitou a rezar por ela. Durante meses auxiliou-a com cestas básicas e batalhou para que se aposentasse – até que conseguiu, graças ao empenho dele.
Tempos depois, ela desejou dar-lhe um presente por tanto que fizera. Mandou deixar na humilde residência dele meio saco de milho verde de espigas escolhidas e descascadas; meio saco de feijão verde, um jerimum e uma galinha gorda, alimentada com cuidado para aquela ocasião.
O padre, porém, não quis receber nada. Disse ao encarregado: “Diga a ela que não precisa. Que ela pegue esta galinha, este feijão e estas frutas e dê de comer a seus filhos e netos.”
Enquanto rezava, a senhora recordou do impacto que teve aquela recusa. Soube, depois, que ele fez isso com diversas outras pessoas, igualmente gratas como ela. De fato, refletiu ela, era um homem de Deus, um santo! E chorou.
Não foi à toa que em sua morte ateus e evangélicos lamentaram sua morte.
Escrevi dois cordéis em sua homenagem. Num deles, eu disse:
"Quando se noticiou
Que o bom monsenhor morreu,
Senti uma dor aguda
Por tudo que aconteceu.
Quando a rádio anunciou,
A cidade entristeceu.
Na missa viu-se um ateu
Grandemente emocionado,
Falando eloquentemente
Sobre seu grande legado,
Pois por crentes e descrentes
Era um padre admirado.
Monsenhor Raimundo e Monsenhor Benvindo tiveram em comum o fato de serem incomuns. Não eram homens de sorriso fácil, mas por suas ações davam provas do amor ao próximo.
Dois bons sacerdotes; dois bons exemplos de cristãos.
ResponderExcluirNum momento onde há maus exemplos.
Mais um bom texto de um artesão das palavras!
João Maria de Medeiros Dantas
Muito grato, amigo João!
ExcluirMonsenhor Raimundo merece todas as homenagens que por ventura venham a ser feitas em sua homenagem e serão muito pouco diante dos seus feitos. Foi uma pessoa verdadeiramente e indubitavelmente abnegada. Ótimo texto teacher...
ResponderExcluirI am pop
I am a good sailor
Vc me fez rir com sua postagem. Viajei no tempo. Obrigado pelo comentário.
ExcluirBela história, caro Gilberto. Inspiradora! 🙏🙏 - Jomar Morais
ResponderExcluirGilberto, acabei de ler essa crônica que recorda meu querido amigo, a quem homenageei e homenageio sempre que posso, inclusive com um artigo biográfico publicado na revista 'Roseiral". Relato comovente o seu, que verdadeiramente me emocionou.
ResponderExcluirRenan.
Fico grato, amigo Renan, por sua leitura e generoso feedback. - Gilberto Cardoso
ExcluirExcelente narrativa. Dois homens, dois sacerdotes, dois modelos de santidade acessível e pragmática no meio de incrédulos, de indiferentes e até de miseráveis!...
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