TIRO PELA CULATRA
O cadáver repousa na sala de visita enquanto os filhos falam na divisão da herança. A casa da fazenda com o açude fica para Jônatas; a serra, com minério de ferro, para Joana. Gente! vamos primeiro enterrar papai, depois, falaremos nisso!
Estes dois sempre foram mais gananciosos, saíram a mamãe! Eu discordo dessa divisão, mas preciso manter a calma para que não venham para cima de mim, pensa Jair.
Santa Maria mãe de Deus... as rezadeiras se revezam desde a madrugada. São quatro velhas e a filha do morador. O padre ainda não chegou. Será se o Jeep se quebrou no caminho? Uma chuva fina conforta a família. Dizem que quando chove no enterro, a alma vai para o céu.
Jailton, o mais novo, está se levantando da cama onde a empregada o visitou agora há pouco. Uma rapidinha antes do café... rogai por nós pecadores... Bem que disseram que a filha do morador era formosa. Hummm! uma mulher dessa, com um banho de loja...
Bom dia, meus caríssimos irmãos! Desculpem-me a demora, é que o sacristão, esta mula quadrada, errou o caminho...
...agora na hora da nossa morte amém! Quanta burocracia para se entrar no mundo celestial! Quando mamãe faleceu não encostou um! Isso é invenção de Joana para dizer que é Santa.
O café está servido padre. Vamos comer, porque saco vazio não se põe em pé! Acho que às cinco da tarde, estes aproveitadores estarão longe daqui. Sinto falta de Papai expulsando-os. Deixe-me limpar padre. Limpe e traga um avental. Sou muito desastrado quando me alimento. O leite acabou de chegar. O senhor toma cru ou fervido? De qualquer jeito, minha filha, o importante é estar abençoado.
Na sala, vizinhos chegam para visitarem o corpo. O velho era teimoso. Deixasse para Maurício salvar a vaca, mas não, ficou puxando o bezerro e deu no que deu.
Acho que vou ficar aqui na sala. Olhar para essa mulher, fingindo ser santinha, é o que mais trouxe de bom com a morte de papai... Ave Maria, cheia de graça...
Eu marquei a missa para às dezesseis horas, o senhor concorda, padre? Concordo, arranje-me um quarto para que eu possa descansar e está tudo resolvido. Espero que Joana pague do seu bolso esse padreco folgado. Não quero dividir despesas com quem não combinou.
Aquele homem está me olhando... já estou esquecendo até a reza. Deve ser o filho do velho que dizem ser namorador... o senhor é convosco, bendita sois vos... Se Abanque compadre, papai falava muito no senhor. É Joana..., nós sempre "prosava". Trago umas notas promissórias para saber quando vocês irão quitá-las. Sim, compadre Antônio, nem se preocupe. Basta só o corpo esfriar na cova que procurarei o senhor para ver quanto é. Dá cinquenta mil e uns trocados. Este velho sempre foi enrolão. Com certeza falsificou a assinatura de pai. Tem testemunha, seu Antônio? Era sua mãe, mas morreu o ano passado e nem deu tempo de renovar as notas. Ah! infeliz mentiroso! Mãe nem sabia assinar!
Se ele quiser me levar para a capital eu vou ser amante dele. Quero é sair desse esconderijo! ... entre as mulheres, bendito é o fruto... Vou falar com Tereza para ajeitar nosso namoro. Vou adicionar o WhatsApp dela sem que Luciana Saiba. Ah! se ele quisesse meu número, ficaria mais fácil de a gente ir se falando... do vosso ventre, Jesus...Não aguento mais essa tristeza do sítio. Quero conhecer restaurantes chiques, andar perfumada... Santa Maria, Mãe de Deus..., roupas da moda... rogai por nós pecadores... ir a cinemas, teatros... agora e na hora da nossa morte... ficar mais bonita... amém!
Irmãos e irmãs. Estamos aqui reunidos... Olá, sou Jair, filho do falecido. Tudo bem? Disfarçadamente ela olhou a mensagem. Que homem! Parece que estava adivinhando meus pensamentos. Fica nervosa. Levanta a vista e lá está ele perto do altar olhando para ela. ...para pedir clemência pela alma do senhor ...
Ela vibra felicíssima em seu pensamento. No cemitério, fica, disfarçadamente, próxima a Jair fingindo tristeza.
A mulher dele está em audiência na Capital e não pode vir ao enterro do sogro. Venha jantar com a gente. Diga que veio ajudar Benedita com a louça. Eu vou falar com ela que você virá.
Dois meses depois, ela olha o mar do apartamento montado por Jair. O sítio está distante, tanto em quilômetros quanto em recordações. Jair a colocou no mesmo prédio que mora com Luciana.
Sabe quem eu avistei hoje aqui no prédio? Quem? ele pergunta, sabendo de quem se trata e finge admiração. O que ele temia aconteceu. Ela vinha com um vestido bege da moda. Ela sempre foi muito linda, e agora está mais ainda. Fiquei admirada. Disse-me que tem um patrocinador rico lhe dando suporte. Ainda bem que Luciana não desconfiou que sou eu, este suporte.
Na segunda-feira, Jair diz à Luciana que irá chegar só à noite em casa. Ela, também, afirma que terá muito trabalho, e antes das dezoito horas não vem para o jantar. Por volta do meio-dia Jair chega ao apartamento da amante, abre a porta e caminha para o quarto. Fazer-lhe uma surpresa depois do almoço, é o seu objetivo. Como é bom ter uma mulher nova à disposição, sem que lhe traga problemas para o casamento.
A porta do quarto está aberta. Ao se aproximar escuta rumores por baixo do lençol. Algo estranho está acontecendo. Tanto que gastou com aquela menina, agora está sendo traído. Antes de fazer algo violento, alguém descobre o rosto e diz: Jair! O que faz aqui, Luciana?! O mesmo que você: usufruindo dessa beleza estonteante, e volta a beijar, sofregamente, a filha do morador.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 29.03.2022 − 21:40
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