sexta-feira, 1 de abril de 2022

NUNCA FOI LOCAL PARA POETIZAR - Heraldo Lins

 


NUNCA FOI LOCAL PARA POETIZAR


Está na guerra. Mulher e filha estão do outro lado da fronteira enquanto o frio e a incerteza o deixam alerta. Muitos colegas tombaram ao seu lado. Ele, mesmo tendo motivos para desistir, permanece defendendo escombros. Ali era um restaurante onde jantava apreciando o piano bem tocado. Tem saudades das meias limpas e um desodorante. Seus dentes estão criando uma crosta. Não quer utilizar a escova de dentes dos inimigos abatidos, mas pretende mudar de ideia. 

Como será que está a filhinha? Às vezes acordava com pesadelos e era ele quem a acalentava. Isso ela saíra ao pai. Tinha perseguições desde a infância. Nunca conseguia dormir totalmente em paz. Parecia que sua alma habitava um outro lugar todas as madrugadas. Agora, perto do horror do inesperado, convive com os sonhos que se tornaram realidade. 

Quer matar, por isso e para isso está ali. Sua vontade de abater um homem está sendo satisfeita. Já destruiu cinco vidas que, como ele, tiveram brinquedos, choraram no colo da mãe e sentiram medo do escuro. Viva a guerra, pois está sendo através dela que pode realizar esse sonho de facilitar a ida de um homem para a eternidade. 

Há um dente doendo desde a noite passada. Não quer pedir baixa por causa de uma dorzinha qualquer. Nem consegue dormir direito. Mastiga do lado direito evitando magoar o local onde caiu a restauração. Quer ser forte, e se pedir baixa para tratar de um simples dente será perseguido o resto da vida pelo fantasma da covardia. Se pelo menos fosse ferido na batalha, seria justificada sua desistência. Não vai desistir assim tão fácil, porque podem achar que está fingindo. 

Olha para o cadáver que abateu há pouco. Apenas um lixo com aparência humana está ali no chão. Era alto o soldado abatido. Seu rosto deformado pelo projétil é motivo de orgulho diante dos outros companheiros. Há uma disputa entre seus pares para ver quem acerta no rosto do inimigo, assim gasta pouca munição e ganha condecoração. 

Ali não se tem tempo para pensar em aposentadoria. As explosões já perto do seu esconderijo o deixam ansioso. Ainda bem que tem algumas soldadas junto ao seu batalhão que servem de depósito de esperma quando estão descansando. Sua mulher nem vai perceber que ele ficou com várias. 

Havia uma que já estava se afeiçoando. Morreu na semana passada. Ele chorou. Era noite quando o míssil detonou pertinho dela. Morreu com ferimentos graves que lhe arrancaram os seios. Ele, mesmo chorando, fez sexo com ela nos últimos momentos de sua vida. Precisou retirar o uniforme dela em chamas, e ele não resistiu quando viu, da cintura para baixo, a pele branca intacta e a calcinha preta bordada. Molhou-se de sangue ao abraçá-la no último momento do gozo. Assim é a guerra. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 31.03.2022  − 10:53



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”