quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O ENSAIO GERAL FOI CANCELADO - Heraldo Lins

 


O ENSAIO GERAL FOI CANCELADO

Há coisas que não têm solução. Acabar com a fome é uma delas. Evitar que garçons perguntem, é outra. A fome e as perguntas me deixam angustiado. Estas duas acima referidas foram objeto de pesquisas, da minha parte, nos últimos dias. Se quisermos nunca sentir fome seremos engordados, mas se nos escondermos dos alimentos, teremos a fome como companheira. Não tem solução.

Viver sem garçons é mais fácil. Basta evitar o ambiente em que estão, e para isso só há um jeito: trancando-se em casa. Não há outra maneira. Eles estão em todos os lugares disfarçados de atendentes, recepcionistas, flanelinhas... e por isso até já pensei em colocar na mão um bilhete: “não se aproximem”. Mas posso ser tachado de mal-educado, afinal eles vivem disso. 

Viver disso é o ponto que nos unem. Vivem perguntando e eu respondendo, mesmo contra a vontade, afinal eles estão em seu ambiente, e eu como intruso pagante, tenho que me curvar às suas interrogações inconvenientes, mas que me dá raiva, ah, isso dá. Disfarço, claro, falando obrigado quando perguntam se quero suco; quando oferecem panfletos nos semáforos, ou mesmo quando ligam e logo perguntam se eu estou bem. 

Estas últimas, garçonetes das empresas de telecomunicações, além do sotaque estrangeiro, exibem uma tendência em perguntar se a pessoa está bem que eu nunca vi mais gorda. Acho que elas sonham com um mundo onde todos estejam mal. Além de querer oferecer um produto, acredito que estejam fazendo uma pesquisa onde o tema é: descubra alguém que esteja mal e ganhe um milhão. Não sei por que a preocupação em saber se a pessoa está bem, afinal elas nem nos conhecem. Ontem uma ligou. Tudo bem com o senhor? Passe uma mensagem sobre o que você quer saber que responderei. Ela desligou educadamente e eu satisfeito por não responder se estava bem. 

Estar bem é uma vertente do nosso humor que muda constantemente, e só em a pessoa querer saber se eu estou bem, já me torna mal. Perdi o dia ou ganhei, são avaliações que faço quando sou perguntado. Quero ter o controle do meu humor, mas isso é quase impossível. Avaliar o próprio pensamento e as sensações que se está sentindo a cada momento é coisa, no mínimo, estranha, até porque ou se vive plenamente ou se observa. Se o viver estiver sendo observado deixa de ser viver e passa a ser um filme que o personagem é a própria pessoa.

A consciência que estou caminhando para o fim do filme traz esse desespero de analisar cada minuto restante. Ao amanhecer passo o escâner na consciência para saber se estou sentindo fome, sinal de estar vivo. A cada segundo o desenrolar da vida segue adiante sem ensaio. Não tenho tempo para reprisar uma doença, um tropeção, pois tudo está vindo e indo uma única vez. São cenas postas sem roteiro nem ensaios porque a vida é o próprio improviso. Olho de lado ou para a frente. Qualquer improvisação dá certo. Antes não percebia, mas agora fico cansado de tanto me dar conta. A vida vem para ser vivida sem ensaio nem receita, e essa espontaneidade é que me transformou em um espectador sistemático de mim mesmo. 

Agora são três as coisas sem solução: fome, garçons e eu.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19/10/2021 – 06:20



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