sexta-feira, 12 de março de 2021

PROFISSÃO PATÉTICA - Heraldo Lins

 

PROFISSÃO PATÉTICA 


Deu trabalho resgatar os patinhos de dentro do bueiro. Eram doze, e apenas três deles não caíram. Foi exaustivo o trabalho de enfiar a mão na água e resgatá-los. Quando eu trazia um à tona a pata demonstrava que ainda havia mais. Fiquei pensando como é que ela, sem nunca ter ido à escola, sabia contar. Eu não avistava mais nenhum, mas ela insistia. Eu novamente procurava pelos retardatários. Cada achado era uma festa, não só da pata, mas também de os curiosos. Todos sã e salvos, seguiram a mãe pata para o lago próximo. 


Ainda bem que existem as câmeras que registraram minha boa ação. No outro dia tive que selecionar mais uma para repetir o sucesso em meu canal do YouTube. O bom de ter um canal é exatamente poder filmar e postar as ações caridosas. Quando não tem nada em vista saio em disparada em meu automóvel jogando dinheiro onde há aglomerados. O corre-corre dá likes. As visualizações estão aumentando, e vão aumentar muito mais. Preciso só aparecer sorrindo e ajudando alguém. 



Nem sempre é fácil ajudar. Encontrei um velhinho com um saco de feira nas costas. Parei o carro e me ofereci a ajudá-lo. Ele aceitou desde que fosse em cima do saco. Tive que levar a feira nas costas e o velhinho pisando no saco. Uma mulher estava lavando roupa em um córrego. Lá fui eu me oferecer. Ela não fez questão, desde que eu lavasse o pneu da bicicleta dela. Ela era muito exigente. Queria que eu lavasse primeiro o pneu. Optei pelas roupas. Era eu lavando as toalhas e ela me mostrando o pneu. 


Hoje eu vivo das rendas que o canal me proporciona. Quanto mais estranhas as gravações, mais há visualizações. No último mês consegui milhões delas. Comecei a série que tem como título “desmembramento”. Comecei cortando meu dedo mindinho e hoje só possuo o braço direito. Toda semana corto um pedaço. Várias câmeras gravando minha dor com o sangue espirrando e eu estancando o sangramento com teia de arranha. Ando me arrastando, mas o objetivo foi alcançado. Agora estou roteirizando a vida de um deficiente caçando jacarés. Eu serei o deficiente. Falta só escolher se irei para a floresta amazônica ou para o rio Nilo, mas o importante é estar na mídia. Dê seu like e se inscreva no canal.   



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 26/01/2021 – 13:39

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