MEDO SEM NECESSIDADE
Aderbal não está assistindo noticiários. As manchetes sobre mortes pelo Covid-19 o entristecem. Eu não sabia. Quando chegou ao patamar de mais de dois mil óbitos, liguei para ele. Ao saber da notícia, entrou em desespero: feche as portas Rosicleide, feche as portas! Ela fazendo crochet, perguntou: é o quê? O bicho está vindo, disse ele apavorado. A vizinha já morreu e ele está rondando nossa casa, feche as portas! Ela atordoada correu e passou a chave onde havia fechaduras. Ficaram os dois em silêncio por um bom tempo até ela perguntar se poderia ir ao banheiro. Vamos juntos possa ser que ele esteja escondido lá. Saíram pé ante pé. A porta estava fechada. Ele deduziu que o Coronavírus estava usando o banheiro. Vá buscar a espingarda, ordenou ele cochichando. Você nunca comprou uma, disse ela com certo pavor. VÁ BUSCAR A ESPINGARDA QUE EU QUERO MATAR ESSE SAFADO! Colocou o dedo entre os lábios e disse sussurrando: é para ele pensar que tenho arma em casa.
O que vocês estão fazendo debaixo da mesa? Perguntou Joquinha saindo do banho. É que sua mãe perdeu a agulha e estávamos procurando. Vai para onde? Vou sair para a praça. Você está doido? O Coronavírus está matando. Só mata velho pai, estou nem aí para ele. Disse isso e saiu apressado. Aderbal correu para o faqueiro. Pegue a peixeira, Rosicleide! Se esse bicho acha que vamos nos entregar sem luta, está enganado.
No outro dia liguei novamente: e aí Aderbal.... conte as novidades! Saímos ontem para a pizzaria, eu, Rosicleide e Joquinha. Bem pouquinha gente lanchando. O povo está com medo desse bichinho sem-vergonha. Eu mesmo não estou nem aí. Ele só mata velho.
Terminada a ligação, fui dormir. Quando acordei saí para caminhar. Estranhei a rua deserta. Cinco minutos depois a viatura da polícia mandou-me encostar com as mãos na cabeça. Em seguida chegou um helicóptero e colocaram, em mim, traje de astronauta. Disseram-me que essa variante do vírus lança um entorpecente e que as pessoas adormecem por cinquenta anos. Já era o ano de dois mil e setenta e um. Estão quase todos mortos, informou-me um robô. Você por descuido não foi visto. As casas estão sob vigilância. Só restam poucas pessoas acordadas e você é uma delas. Muitos não retornam do sono.
E agora? Perguntei ao outro. Você irá para a lua. Montamos uma estação lá onde todos estarão protegidos. Fui para a lua. Ao chegar lá encontrei toda minha família do mesmo jeitinho. As crianças brigavam para ver quem pulava mais alto. Na lua o tempo não estraga o corpo. Eles vieram logo que adormeci. Só eu estou com cabelos brancos. A minha mulher entrou na aula de descompressão querendo envelhecer. A moda lá são rugas e cabelos brancos. Fiquei em evidência. As mulheres todas novinhas querendo um pouco do meu DNA. Atendi as vinte e cinco em idade de procriação. Engravidaram todas. Já faz cinco anos que estamos esperando as crianças nascerem, e como aqui na lua tudo é lento, quando eles nascerem eu continuo a história.
Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)
Natal/RN, 11/03/2021 – 10:32
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