sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Carta aberta a Regina Duarte




Cara Regina Duarte,

Convivo com sua imagem desde criança, provavelmente desde que você interpretou a Viúva Porcina em Roque Santeiro, que foi exibida pela primeira vez quando eu tinha 3 anos. Aos poucos, fui me informando sobre sua trajetória e me dei conta que sua evolução artística foi impressionante: ainda muito jovem, foi recrutada pelo famoso diretor Walter Avancini quando ele a assistiu num comercial, e sob a tutela dele transformou-se numa das principais atrizes jovens da extinta TV Excelsior, fazendo papéis de mocinha romântica com elevada carga dramática em novelas como “As minas de Prata”, “A grande viagem” e “O terceiro pecado”, para depois ingressar na Globo, onde sua fama aumentou a tal ponto que, estrelando novelas como “Irmãos Coragem”, “Minha doce namorada”, “Carinhoso” e, principalmente, “Selva de Pedra”, ganhou a alcunha de “namoradinha do Brasil”. Contudo, você não se acomodou e, sentindo chegar a maturidade, preferiu investir em papéis mais densos, mostrando que também era uma mulher capaz de segurar a vida com as próprias rédeas. E ao estrear a novela “Nina”, o Brasil viu surgir uma nova Regina, na pele de uma jovem professora idealista que não tinha receios de enfrentar a moral conservadora da São Paulo dos anos 20 e lutava com uma milionária para ficar com o amor de sua vida. E esse caminho foi a ponta de partida para outras personagens: Maria Lúcia Fonseca, a Malu, socióloga divorciada que tentava “começar de novo”, criando a filha adolescente enquanto lutava contra os preconceitos da sociedade da época contra mulheres separadas; Raquel Acciolly, guia turística tapeada pela própria filha que não tinha medo de botar a mão na massa enquanto tentava provar, para ela e para si mesma, que era possível ser bem-sucedida sem perder a honestidade (e conseguiu, primeiro vendendo sanduíche na praia, até ter condições de abrir seu restaurante); Maria do Carmo Pereira, a empresária que se orgulhava da origem humilde e do pai sucateiro, e afrontava sem receios a aristocracia esnobe de São Paulo; e, não menos importante, Chiquinha Gonzaga, a primeira compositora da MPB, que, abolicionista, republicana e duas vezes separada, brigou com a sociedade do Século XIX para ser ouvida e respeitada, além de ter praticamente inaugurado a luta pelos direitos autorais no Brasil quando fundou a SBAT. Todas mulheres corajosas e independentes, que não tinham medo de lutar pelo que é certo nem de dizerem o que pensavam, que inspiraram e inspiram a luta de muitos, e que, algumas vezes, tiveram de enfrentar a Censura para que sua atuação chegasse ao resto do país. Foi através dessas personagens que aprendi a respeitá-la, pois vi que era sua atuação e entrega que as tornava reais.
Por tudo o que elas representam, é que eu lhe peço: não aceite nenhuma indicação para ser secretária da Cultura do governo Bolsonaro.
Este governo, senhora Duarte, ao qual a senhora apoia sem nenhum receio, além de contribuir para a vida do pobre ser mais difícil, tem tratado a Cultura como algo de segunda classe, reprimindo nossa produção cinematográfica, boicotando o patrocínio a peças que questionam o papel da ditadura nas mazelas do país e, como ato mais recente, usando o Fisco para tentar prejudicar atores que trabalham na mesma empresa que a senhora. E o secretário que acaba de deixar essa função só a conseguiu porque ganhou destaque depois de ter chamado de mentirosa sua colega Fernanda Montenegro, uma das nossas atrizes mais importantes (e que dividiu com você duas obras televisivas – “Rainha da sucata” e “Incidente em Antares – e um personagem de renome do teatro – “A compadecida” de Ariano Suassuna em duas das suas adaptações cinematográficas), só por ela ter se posicionado contra a censura. E agora, depois que, como um peixe que morre pela boca, ele caiu em desgraça por ter parafraseado um discurso autoritário e movido pelo ódio, dizem que você o substituirá.
Na verdade, não deveria me surpreender com isso, pois parece só mais um passo de vários que a senhora tem dado nos últimos anos, desde quando apareceu no horário eleitoral em 2002 fazendo terrorismo político dizendo “Eu tenho medo”, vinculando-se cada vez a um reacionarismo que, segundo especulam, tem sido sua tônica desde que se tornou fazendeira. Não foram poucos os seus fãs e colegas que se decepcionaram com algumas de suas atitudes mais recentes, como quando minimizou a homofobia do atual presidente dizendo que “são só palavras como as que meu pai falava”, e não posso negar que isso choca, pois trazem a dúvida se, mesmo tendo interpretado personagens tão libertárias (fora a verdadeira radiografia das mulheres brasileiras que a senhora fez na série “Retrato de mulher”, em 1993), a senhora conseguiu aprender alguma coisa com elas.
Não sei se a senhora prefere o conforto financeiro ou o seu legado artístico, mas gostaria de lembrá-la de que dinheiro e poder não compram respeito, senhora Duarte. E se a senhora respeita os colegas com quem dividiu a cena em mais de 50 anos de carreira (inclusive os aposentados, outra categoria que esse governo negligenciou) e, principalmente, se respeita as personagens que marcaram sua carreira, peço-lhe que fique do lado da classe artística e não integre um governo que a desprestigia.

Atenciosamente,




                                  Renan II de Pinheiro e Pereira.
Advogado, escritor e membro do IHGRN.

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