sábado, 17 de fevereiro de 2018

EU, ROBÔ? NÃO... - Mário Sérgio Cortella


Eu, robô? Não…


Do alto de um edifício na cidade de São Paulo, ao olhar uma via engarrafada,
cena que se repete todos os dias, conseguimos imaginar o deslocamento humano que acontece em vários grandes aglomerados urbanos ao redor do mundo por causa do trabalho. Só na capital paulista, são cerca de 11 milhões de pessoas que trabalham tresloucadamente em seu cotidiano.
Poderia ser diferente? É possível que sim. Essas pessoas poderiam trabalhar
menos, de maneira menos sofrida, se repartíssemos o que é produzido. A não
repartição leva a duas situações: quem acumula quer continuar acumulando, e
quem não tem preci sa se mobilizar mais para ter alguma possibilidade de
sobrevivência.
A divisão social do trabalho abordada pela sociologia, especialmente pelo
francês Émile Durkheim, traz a percepção de que potencializamos nossas
capacidades quando nos dividimos para fazer tarefas diferentes, de maneira a
não termos de fazer a mesma coisa. Por trás disso, há sempre um questionamento, como um diálogo interno:
– Por que faço o que faço?
– Ora, porque sou obrigado.
– Mas e se eu não for obrigado a fazer exclusivamente isso? Poderia fazer outra coisa?
– Se eu tiver escolha, parto para essa outra coisa.
– Mas por que, em vez de fazer o que faço no trabalho, não vou ser um
empreendedor?
– Porque eu não tenho condição de fazê-lo. Quando tiver o farei.
Onde há o travamento? Na impossibilidade de ação, e então eu cumpro a
minha tarefa.
Karl Marx fazia uma distinção muito clara entre os dois reinos da vida: o da
necessidade e o da liberdade. No reino da necessidade, eu não posso deixar de
fazer aquilo que eu faço, senão pereço. No reino da liberdade, a vida é escolha.
Segundo Marx, existe uma diferença entre ser “livre de” e “ser livre para”.
Se você não for livre da fome, da falta de abrigo, da falta de socorro médico,
você não é livre para outras escolhas. Uma parcela das pessoas é livre da
miséria, da penúria, da carência, e é livre inclusive para dizer “não vou ter um
trabalho regular”, “vou viajar”.
Para ser um mochileiro, é preciso ser livre de uma série de outras restrições.
Não adianta imaginar que um menino pobre da periferia de uma metrópole
colocará uma mochila nas costas e viajará para a Austrália. Um garoto de família mais abastada seria capaz de fazer isso. Porque ele tem contatos, já armazenou na sua mochila vivencial uma série de ferramentas que o permitem essa experiência, porque é privilegiado. Para o outro não há escolha, ou trabalha ou morre.
Em uma de suas obras, Marx sonhou que chegaríamos a uma tecnologia tal
que o homem dividiria o dia de modo que fosse possível trabalhar apenas quatro
horas. E as outras vinte seriam dedicadas ao lazer, à convivência com os filhos.
Ele dizia, inclusive, que iríamos pescar. Esse sonho de Marx é, em grande
medida, resultado da crença na racionalidade tecnológica, a partir da qual
teríamos a possibilidade de partilhar as tarefas, o que economizaria tempo
coletivo.
Do ponto de vista técnico, já chegamos a esse patamar, a humanidade
poderia viver hoje com sobra de matéria e tempo do que já produzimos. A
questão é que caminhamos para a concentração em vez da distribuição e, de
modo realista, não temos uma partilha das tarefas. Enquanto algumas pessoas
são sobrecarregadas, outras são liberadas.
Isso é bastante evidente, basta imaginar a quantidade de roupas que guardamos sem usar por dois, três anos. Se numa comunidade o uso tivesse de
ser contínuo, a produção de muitos itens seria reduzida e muitos recursos seriam poupados.
Sobre isso, concordo com o pensador norte-americano Benjamin Franklin, que dizia que três mudanças de casa equivalem a um incêndio, porque deixamos muita coisa para trás que nem tínhamos notado acumular. O desperdício hoje é tanto que precisamos continuar nos esforçando para manter um modelo que já seria sustentado se houvesse partilha.
Ainda no século XIX, o jornalista e escritor francês Paul Lafargue (genro de
Karl Marx) produziu uma obra muito interessante chamada O direito à preguiça.
Nela, ele escreve algo que parecia um contrassenso na década de 1880, quando
os operários na Alemanha, Inglaterra e França discutiam o direito ao trabalho.
Na época, ainda não havia uma legislação trabalhista regulamentando a
jornada de oito horas, o que, após várias discussões, apareceria tardiamente no
século XX. O primeiro documento a reivindicar uma jornada organizada é uma
encíclica do papa Leão XIII, a Rerum Novarum, de 1891, que inclusive
argumenta a necessidade de organização sindical. Produz-se naquele momento
um debate anterior à encíclica sobre o direito ao trabalho. Enquanto isso,
Lafargue reivindica o direito à preguiça, com base no seguinte argumento: “Já se trabalha bastante, o que nós precisamos ter é uma máquina que nos poupe
trabalho para ficarmos mais com a família”.
A ironia nesse texto de Lafargue é a recusa a essa laborlatria, também
manifestada no século XIX. Evidentemente, Marx está pensando na organização
de uma vida na qual houvesse uma repartição, para isso ele usa uma expressão
proveniente do mundo anarquista, que sintetiza muito bem o que seria essa
partilha com tempo poupado: “De cada um de acordo com a sua possibilidade;
para cada um de acordo com a sua necessidade”.
Inclusive, esse foi o lema de várias experiências anarquistas que ocorreram
até mesmo no Brasil. No estado do Paraná existiu uma fazenda anarquista,
chamada Colônia Cecília, e, ao contrário do que se supõe, anarquismo não é
ausência de ordem, é ausência de opressão. Em fazendas como essa, a
propriedade da terra era coletiva, conforme esse princípio: de cada um de acordo com a sua possibilidade; para cada um de acordo com a sua necessidade. Elas foram os modelos para o que mais tarde seriam os kibutzim, em Israel.
Desde a Revolução Industrial, o mundo do trabalho ficou extremamente marcado pela máquina, reforçando inclusive a noção do trabalho alienado. O
automatismo, esse modo automático de ação, em grande medida, tem como
consequência a alienação da execução. Uma pessoa alienada é alheia a algo. A
intencionalidade dela não está naquilo que faz, ela não tem consciência direta do que produz, está fazendo algo automaticamente.
Nesse sentido, o trabalho feito de modo robótico é algo que, durante o século XX, foi decisivo para a alteração do mecanismo de produção. O taylorismo ou fordismo, em grande medida, acabou gerando a perda da
inovação, da criatividade, o que, num mundo tecnológico, é uma coisa negativa.
Por isso, se o próprio indivíduo fizer as coisas de modo automático,
robótico, isso levará a um processo de alienação, isto é, de perda de si mesmo.
Portanto, algo muito forte da natureza do trabalho se perde, a natureza autoral, a sensação de “eu sou o realizador daquilo”. Fazê-lo de modo automático é tirar de mim a dimensão realizadora. Nessa hora, eu me desumanizo, isto é, me
aproximo do mundo das máquinas.
Retomando a expressão de Marx, o trabalho alienado é aquele que eu faço e
que não pertence a mim e eu também não pertenço a ele. Nem o que eu faço é
minha propriedade, nem eu sou propriedade de mim mesmo. O trabalho alienado é aquele que é estranho a mim.
Quando vejo um livro que publiquei, aquele trabalho não é estranho a mim.
Assim como um almoço que preparo. A respeito disso, Marx vai usar a ideia de
estranhamento, o trabalho no qual você se perde. Daí uma expressão muito
recorrente no mundo do trabalho ser “eu não estou me achando naquilo que
faço”.
A grande simbologia do filme Tempos modernos (de Charles Chaplin,
1936) é que o Chaplin, interpretando o operário, não é esmagado pela máquina.
O mais triste nessa obra não é o automatismo do movimento da linha de
montagem, que ele, mesmo após a parada da esteira, continua reproduzindo. Mas sim a alegoria de que ele se integra àquela engrenagem de tal modo que sai do outro lado ileso. E isso é o contrário do que se imaginaria do mundo do trabalho, no qual a pessoa deixa de ser pessoa no cotidiano.
Algumas empresas, na área industrial, conseguiram ampliar a visão do todo
fazendo com que houvesse um rodízio de profissionais entre as várias funções.
Nas equipes autogerenciadas, o rodízio permitiria uma visão mais panorâmica
dos processos, uma vez que o fordismo e o taylorismo acabaram introduzindo
aquele parcelamento da atividade com o qual a visão geral do resultado do que
se faz é perdida.
Alguns até poderiam dizer que “seria muito bom se o trabalhador fosse obediente, servil, não pensasse, apenas executasse”. Esse tipo de raciocínio não
cabe mais nos tempos atuais, porque uma pessoa com essa condição pode ser
pouco produtiva, já que não tem iniciativa, autonomia ou criatividade, portanto,
pode ser substituída por um robô. E a palavra “robô” vem do tcheco robota, que
significa “escravo”, aquele que faz o que lhe é ordenado.
Hoje este é um valor organizacional: uma pessoa consciente das razões pelas quais faz aquilo que faz é muito mais eficaz.
Nessa concepção, uma empresa inteligente tem funcionários que também
pensam a razão daquilo que estão fazendo, inclusive porque isso permitirá que se produza inovação, isto é, que se pensem outros modos de se fazer aquilo que se faz e ganhar produtividade, competitividade, lucratividade e perenidade em
relação ao próprio negócio.


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