quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A telenovela e o falso moralismo cultural - Renan Pinheiro II


 
O último final de semana marcou o encerramento de mais uma novela das nove: “Avenida Brasil”, de João Emanuel Carneiro, sucesso que foi assunto de revistas, redes sociais e conversas do dia-a-dia nos meses em que foi exibida, por ter “sacudido a pasmaceira” a que o horário nobre da televisão estava submetido nos últimos tempos com uma trama que discutia vingança, ascensão social e exploração infantil, numa linguagem “gente como a gente” e uma trilha sonora para muitos de qualidade questionável. Mas não é esse o verdadeiro assunto desse artigo, nem o final que muitos consideraram decepcionante em relação à trama como um todo: trata-se de alguns comentários que observei nas ruas ou na Internet, por ocasião do fato. Segundo eles, era ridículo haver tanta repercussão em torno de uma novela, já que assisti-las, além de perder um tempo que poderia ser melhor empregado com livros ou qualquer outra atividade, seria dar audiência a uma emissora que há anos domina o cenário político e ideológico do país e, portanto, uma forma de perpetuar seu poder. Houve ainda quem dissesse que o gênero como um todo só produzia lixo e era “alienante”, “desviando” a vista das pessoas da corrupção e outros males que assolam o país e que as tramas estavam ficando “decadentes”, só faltando desclassificar como “ignorante” ou “analfabeto cultural” aquele que se declarasse fã da novela ou ao menos simpatizante, do tipo que comenta e teoriza sobre cenas. A repulsa não só pelo folhetim que estava se encerrando como por todos em geral era tão ostensiva que fiquei me perguntando se ela era justificada, ainda que não tenha me chocado tanto.
Isso porque qualquer um que frequentou uma universidade ou certos ambientes ligados à cultura sabe que, nesses locais, citar uma novela, mesmo que seja só para exemplificar uma situação ou fazer um breve comentário, na frente de amigos e colegas, é um ato de coragem. Minisséries não são muito hostilizadas, pois frequentemente se baseiam em obras literárias ou textos biográficos e têm muita ênfase na análise política e social do período descrito, além de serem mais “fechadas” em termos de sinopse, mas suas companheiras de horários mais acessíveis não escapam de um tratamento mais hostil pelos assim chamados “eruditos”. Os motivos são muitos: o fato de serem obras abertas à opinião do público, podendo ser alteradas conforme a vontade dele (incluindo-se aí mudar destinos e mesmos traços de caráter de personagens), suas tramas geralmente serem maniqueístas, com o “bem” e o “mal” facilmente delineados e sem tanto espaço para zonas cinzentas (geralmente aquelas que têm protagonistas com atitudes mais dúbias costumam fracassar, embora “Avenida Brasil”, com uma mocinha que chegou a humilhar sua ex-madrasta malvada com requintes de crueldade, tenha sido uma exceção), muitas vezes fantasiando ou distorcendo a realidade, principalmente ao descrever eventos históricos, correndo por fora também a acusação de descaradamente manipularem os espectadores. Segundo essa opinião, novelas são obras menores, escritas sem muito cuidado (o que se refletiria inclusive no seu elenco, escalado mais com base em “rostinhos bonitos” e com caras de ricos do que necessariamente em talento artístico) e destinadas ao público menos escolarizado. Um exemplo dessa mentalidade de “desdém” é que um diretor teatral, ao comentar o recente sucesso da atriz potiguar Titina Medeiros numa novela da Globo que descrevia o universo das domésticas, deu a entender que não considerava que esse fosse um aspecto tão relevante na carreira dela e esperava que após o término desse trabalho ela voltasse àquele que para ele era o seu “verdadeiro” lugar, o palco. Palavras um tanto semelhantes às dos profissionais do teatro que censuram os atores que não hesitam em trocá-lo pela televisão, ou que ironizam o interesse de “globais” em suas atividades, como ocorreu quando Wagner Moura, consagrado como o vilão de uma novela de Gilberto Braga e estrela do filme “Tropa de Elite”, resolveu encenar “Hamlet” em sua versão integral.
Na verdade, esse ranço contra a teledramaturgia não é de hoje: em outros tempos, palavras semelhantes foram ditas contra os principais antecessores das novelas, o melodrama (encenação teatral que misturava música e texto e era de alcance mais popular que as óperas), o folhetim (história publicada em capítulos nos jornais, geralmente de fundo romântico ou fantasioso) e a radionovela, considerados como diversão do “populacho” ou, no caso dos dois últimos, das moças românticas ou donas de casa. E essa vinculação os estigmatizaria para sempre (tanto que o termo “melodrama” costuma ser usado para descrever filmes lacrimejantes e associados ao público feminino, mesmo se não tiverem números musicais), embora alguns clássicos da Literatura brasileira e mundial, como “O conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas, e “O Guarani”, de José de Alencar, tenham sido publicados em folhetim, e que a radionovela “O direito de nascer”, do autor cubano Félix Caignet, tenha feito um sucesso sem precedentes ao inovar a maneira de contar histórias, fazendo com que o público tomasse conhecimento dos principais dramas da história antes dos protagonistas, e tenha sido transmitida em outros países, inclusive o Brasil, onde teve êxito tanto no rádio quanto na TV, tornando-se um dos maiores destaques da história da TV Tupi nos anos 60, além de também ter inspirado pelo menos dois filmes. Como “filho de peixe peixinho é”, e a telenovela alcançou muito mais sucesso que qualquer um de seus antepassados, acabou por herdar as críticas que eles receberam com uma intensidade ainda maior, sem mencionar que o período onde ela se firmou como opção de entretenimento no Brasil foi nos anos 60, época de quebra de paradigmas, censura e embate entre Esquerda e Direita. Como naquele momento os “engajados” se refugiavam no teatro, encenando peças do grupo Arena, Chico Buarque e Oswald de Andrade, os atores de televisão, veículo mais associado aos grandes grupos econômicos, eram vistos como sendo de “Direita”, sentimento que era reforçado pelas pressões da censura sobre os primeiros. Resquícios dessa visão ainda persistem, mas são suficientes para justificar tais acusações, ou que esse produto seja visto com desconfiança e cuidado?
Em termos. De fato nem todas as novelas são boas, e muitas são claramente dispensáveis. Também é verdade que os autores procuram manipular os telespectadores, que muitas vezes eles irritantemente “esticam” a duração das tramas quando elas estão tendo uma boa audiência, o que geralmente contribui para descaracterizá-las e “embarrigá-las”, e quando se baseiam em obras literárias em não poucas ocasiões são desrespeitosas com o texto que as inspirou. Assim como quem as assiste deve estar ciente de que são obras de ficção e não se deve “seguir” automaticamente tudo o que elas defendem (eu, por exemplo, não gosto das que são escritas por Manoel Carlos, autor que no meu conceito banaliza a violência e o adultério). E é necessário admitir que é preciso muita paciência para acompanhar uma trama por tantos meses, e não faria mal algum se elas fossem mais curtas. Contudo, é necessário ver o outro lado da questão. Não só a novela é um aspecto cultural relevante do Brasil, sendo um dos produtos mais exportados para o exterior e motivo para que os estrangeiros se interessem por nosso país, como suas raízes aqui são híbridas. Chegando ao Brasil praticamente junto com a TV (a primeira telenovela brasileira, “Sua vida me pertence”, foi levada ao ar pela Tupi em 1951, um ano após sua inauguração, escandalizando o público ao mostrar um beijo na boca em seu último capítulo), no início ela era mais curta e geralmente se inspirava em textos clássicos ou de sucesso (entre alguns dos romances adaptados para a TV brasileira nos seus primeiros anos estão os romances “Os miseráveis”, de Victor Hugo, “Pollyanna”, de Eleanor H. Porter, “... E o vento levou”, de Margaret Mitchell e “A canção de Bernadette”, de Franz Werfel, esses dois últimos também adaptados de forma marcante para o cinema), o que não poderia ser diferente numa programação que era marcada por teleteatros. A ligação com a literatura era tão forte que entre alguns dos novelistas dessa época e dos anos seguintes figuram nomes consagrados das letras brasileiras, como Tatiana Belinky (autora da primeira adaptação do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” para a TV, na Tupi dos anos 50), Jorge Andrade (dramaturgo de sucesso, chegou a adaptar duas de suas peças, “A escada” e “Os ossos do barão”, para a teledramaturgia, além de ter criado outras especificamente para esse meio), Dias Gomes (que teve um papel revolucionário tanto no teatro quanto na televisão, através de obras como “O pagador de promessas”, “O santo inquérito”, “O bem amado”, “Saramandaia” e “Roque Santeiro”) e até mesmo Nelson Rodrigues, que escreveu três novelas para a TV Rio no início dos anos 60. Além disso, algumas das novelas mais famosas de todos os tempos foram inspiradas em livros, como “Irmãos Coragem” (que tinha elementos das obras “A pérola”, de John Steinbeck, “Mãe Coragem” e “As três máscaras de Eva”), “Selva de pedra (inspirado no romance “Uma tragédia americana”, que já dera origem ao filme “Um lugar ao sol”)”, “Dona Xepa (inspirada numa peça de Pedro Bloch já adaptada para o cinema)”, “A escrava Isaura”, “A sucessora”, “Meu pé de laranja lima” e “Éramos seis” (adaptada para a TV quatro vezes, duas delas na Tupi). Atualmente essas influências podem ser menores ou até episódicas, mas não só elas ainda podem ser percebidas (a própria história de “Avenida Brasil” parece se espelhar tanto na trama central de “O conde de Monte Cristo” quanto em aspectos da história bíblica de José e seus irmãos) como ainda costuma utilizar os serviços de grandes escritores, entre eles Aguinaldo Silva e Maria Adelaide Amaral. Sem mencionar que assisti-las pode ser uma maneira de analisar o vestuário, o comportamento e até a linguagem de uma época, e que muitas vezes elas é que tomaram a iniciativa de levantar entre a população discussões de temas polêmicos, como tráfico e consumo de drogas, divórcio, união homossexual, repressão política e social e até a importância da Literatura, não poucas vezes sofrendo conseqüências por isso (nem todo mundo sabe, mas a esposa de Dias Gomes, Janete Clair, novelista de sucesso não raro tachada de “alienada” e “fantasiosa”, foi uma das artistas que mais sofreram com a censura, sendo forçada até mesmo a alterar a trama de “Selva de pedra” na metade da história porque um de seus personagens seria bígamo sem saber, e ainda teve de suportar intromissões que prejudicaram suas novelas “Fogo sobre terra” e “Duas vidas”, porque elas questionavam os efeitos que obras governamentais provocariam sobre a população das terras onde seriam realizadas). Além disso, foram elas que revelaram para o Brasil inteiro talentos como Lima Duarte, Glória Pires, Lídia Brondi, Toni Ramos, Regina Duarte, Francisco Cuoco, Tarcísio Meira e Glória Menezes (mesmo Fernanda Montenegro e Paulo Autran, que sempre foram referência no teatro e já haviam feito grandes filmes, talvez não fossem tão conhecidos se não tivessem feito novelas).
De forma que, mesmo as telenovelas tendo deficiências, é um tanto precipitado julgá-las obras menores. Ninguém é obrigado a vê-las, mas se quiser dar uma “espiada”, não há mal algum que o faça, desde que mantenha sua mente aberta para outras formas de entretenimento e aprendizado. Até porque pode ter a chance de encontrar cenas arrebatadoras, como o momento em que João Coragem partiu seu diamante no final de “Irmãos Coragem”, Sônia Braga subindo no telhado para pegar uma pipa em “Gabriela’ ou sacudindo a pista em “Dancin Days”, o vôo de João Gibão sobre Saramandaia fugindo de seus perseguidores e abrindo o céu para que voltasse a chover na cidade castigada pela seca, o jovem José Inocêncio plantando seu facão diante do Jequitibá Rei que era o marco inicial de suas terras em “Renascer” e, por que não, a disputa melequenta de Fernanda Montenegro e Paulo Autran em “Guerra dos sexos”. Até porque, para quem acha que escrever novela é “besteira”, tente fazer um esforço para escrever uma história e imagine como seria ter de desenvolvê-la de forma coerente e razoável durante meses. Garanto que não será uma experiência fácil, e só por isso merece respeito.

P. S.: dedico este texto a um de meus ex-professores, o hoje desembargador federal Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Culto e cosmopolita, capaz de ler obras de renome no idioma original e de cantar uma mesma música em mais de uma língua, ele me ensinou muito em suas aulas não só sobre Direito Processual Civil e cultura em geral, mas também, ouvindo-o comentar em sala as últimas novidades do gênero, a não ter receio de admitir publicamente que acompanhava novelas, mesmo que não o faça com a mesma assiduidade da infância. Obrigado por ter me ajudado a vencer esse preconceito, Dr. Marcelo, pois mesmo que não seja um noveleiro de carteirinha não me furto ao prazer de ver um capítulo ou outro de vez em quando, agora sem tanta culpa.
Marcelo Navarro

2 comentários:

  1. Francisca Joseni dos Santos24 de outubro de 2012 às 08:15

    Muito bem dito Renan! Realmente os eruditos miniminizam o valor histórico da teledramaturgia brasileira. Pessoalmente, não assisto novelas, por que tenho uma criança em casa que assiste desenhos animados e eu o acompanho, no entanto, já assisti e muito e não acho demérito algum assistir à novelas.
    Francisca Joseni dos Santos - Professora

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  2. De Odete Roitman a Max a novela mantem seu modelo arquetípico. É uma obra aberta e integralmente comercial, ou seja, o autor conduz a trama de acordo com a audiência, com digressões, muitas vezes absurdas e poucas vezes coerentes. Contudo é também um objeto de estudo e não deve ser desprezada. Eu pelo menos ainda sinto falta dos debates que travávamos na disciplina optativa de Teledramaturgia Brasileira, do curso de Comunicação Social.
    Devemos lembrar que a televisão é um campo ideológico dominante, por isso mantem esse modelo "perfeito" de sociedade, segundo seus critérios. Isto é: Rico, pobre, branco, preto - cada qual no seu cada qual.

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