"Emília Pérez" está nua
- ou o que a "queda" do favorito ao Oscar 2025 pode nos ensinar.
Exceto se você estiver numa bolha
muito distante de qualquer veículo de comunicação, é muito difícil não ter
conhecimento da ascensão e queda do filme francês "Emília Pérez",
musical de Jacques Audiard que narra como um perigoso traficante de drogas e
líder de cartel mexicano faz uma cirurgia de redesignação sexual e anos depois,
com o apoio da advogada que o assessorou no procedimento, volta para a família
sem se dar a reconhecer e inicia uma jornada de redenção ao criar uma ONG para
identificar casos de desaparecidos no país. Aclamado no Festival de Veneza,
vencedor de prêmios em inúmeros festivais e indicado a 13 categorias no Oscar,
a campanha do filme, que foi produzido pela poderosa NETFLIX, sofreu um duro
revés quando usuários das redes sociais descobriram postagens antigas de alto
teor preconceituoso e controverso da protagonista Karla Sofia Gascon, junto com
declarações depreciativas do diretor sobre a cultura mexicana, mas
principalmente quando cinéfilos e alguns críticos do tema, especialmente youtubers,
começaram a denunciar diversos problemas de roteiro, estrutura e mesmo nas
performances da obra, como uso indiscriminado de estereótipos na construção dos
personagens, falta de cuidado nas descrições do México ou dos procedimentos
médicos relacionados com a transexualidade e condução amadora dos números
musicais. Embora não seja impossível que no dia 02 de março ainda ganhe algum
dos prêmios a que está indicado, atualmente a maior parte das menções ao filme
têm sido negativas, até mesmo acusando-o de só ter feito sucesso nesses
festivais porque soube usar a agenda política LGBTQI+ a seu favor, bem como de
refletir a visão preconceituosa que norte-americanos e europeus possuem dos
mexicanos.
Provavelmente muitos, ao se
depararem com as resenhas mais incisivas sobre os problemas e os erros de
representação da obra, devem se perguntar como pessoas tão experientes como os
membros votantes desses festivais e outros críticos não se deram conta da
obviedade deles e o exaltaram, incorrendo num "lapso" de tamanhas
proporções. Mas a explicação é mais simples do que parece, tanto que ela pode
ser encontrada num famoso conto de fadas: "A roupa nova do rei",
publicado por Hans Christian Andersen em 1837.
Nessa história, dois malandros
chegam numa grande cidade com o objetivo de enriquecer, e ao descobrirem que o
rei do país era tão vaidoso que gastava todo seu dinheiro com roupas,
espalharam que eram renomados alfaiates e seriam capazes de tecer uma roupa que
só era vista por pessoas inteligentes. Como eles esperavam, isso chegou aos
ouvidos do rei, que os contratou por uma grande quantia, e ainda deu a eles
grandes quantidades de seda e ouro, essenciais para a confecção da roupa nova.
Eles "trabalharam" fingindo que teciam e costuravam a roupa durante
semanas, e embora o ateliê tenha sido visitado tanto pelo rei quanto por seu
primeiro ministro e alguns cortesãos, sem que nenhum tenha visto nada, ninguém
quis ser chamado de burro e todos disseram maravilhas das peças em andamento,
até o dia em que deram o trabalho por terminado e foram ao palácio ajudar o rei
a vesti-la. Quando "concluíram", disseram ao rei que ele estava
impecável, mesmo que este se visse nu no espelho, e depois ele seguiu num
cortejo solene pela cidade, acompanhado da corte. Com medo de serem chamados de
burros, o povo elogiava o rei, até um menino berrar "O rei está nu",
e só depois disso se viram livres para denunciar a situação e rirem do patético
espetáculo oferecido pelo tolo e vaidoso monarca.
Qual a moral da história? É a de
que, quando há algum tipo de pressão social que pode interferir no julgamento
alheio ou no próprio sobre suas capacidades, muitas pessoas preferem fingir que
veem o que não veem, ou aceitam a opinião dos outros acriticamente por
considerarem que não são capazes de terem entendimentos mais aprofundados que
eles, como foi o caso do rei e da maior parte dos habitantes do reino, que
tiveram medo de serem considerados idiotas caso não enxergassem a propalada
roupa. E mais, fizeram isso sem nenhuma justificativa real para tanto, pois os
vigaristas não apresentaram nenhuma prova das suas capacidades, apenas fizeram
uma "propaganda" muito eficiente delas. Só quando alguém que não
estava inserido naquele "pacto" de medo e acobertamento mútuo, no
caso o menino, teve coragem de denunciar que não havia nenhuma roupa mágica,
foi que se sentiram livres para reconhecer isso, mas já era tarde: o rei estava
nu diante de todos, e os malandros haviam fugido com todo o dinheiro e riquezas
que tiraram dele (na verdade, do patrimônio público).
E é isso que explica a ascensão
de "Emília Pérez": sabendo da relevância dos temas dos direitos dos
transexuais e dos cartéis de drogas no México, o diretor soube realizar uma
obra fluente que aproveitava as duas temáticas, com uma edição arrojada, um bom
elenco (Karla Sofia Gascon, Zoe Saldaña, Edgar Ramírez), e que, como já foi
mencionado, encaixava-se na visão que
muitos habitantes do "primeiro mundo" tem do México e dos latinos em
geral, tudo isso embalado por uma propaganda eficiente. Foi assim que conseguiram
a Palma de Ouro em Cannes (e o elogio público da presidente do festival na
ocasião, a cineasta Greta Gerwig, "queridinha" do pessoal
"moderninho" e das "feministas" por causa de obras como
"Barbie"), e isso foi impulsionando as demais premiações, que foram
se alimentando mutuamente num fenômeno que hoje muitos chamam de "efeito
manada". Esse fenômeno é fundamentado, em grande parte, no receio de
sentir-se excluido em relação aos demais, e no presente caso pode ter sido
reforçado pelo receio de ser considerado reacionário caso criticasse a obra
(tanto que Gascon invocou esse argumento quando as primeiras críticas mais
sérias apareceram). E assim como no conto, foi preciso que alguém que estava à
margem desse processo (no caso, principalmente os cinéfilos e críticos
mexicanos e brasileiros, estes por causa da rivalidade com "Ainda estou
aqui", de Walter Salles Júnior, que concorre com ele em três categorias),
"desnudasse" as mazelas desse produto, desmascarando-o.
Se agiram a tempo de impedir mais
um resultado equivocado do Oscar, como hoje são consideradas as premiações de
"Shakespeare Apaixonado"? Não há como saber agora, mas desde já
podemos aprender algo com esse incidente. No caso, a não nos deixarmos conduzir
acriticamente pelas opiniões alheias, só pelo medo de ser rotulado como
ignorante ou equivocado, e buscarmos SEMPRE o entendimento mais fundamentado
sobre qualquer assunto.
*Renan II de Pinheiro e Pereira.
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