sexta-feira, 2 de agosto de 2024

POLÊMICAS EM VÃO

 


POLÊMICAS EM VÃO 


A porteira range, dando passagem para os netos que até já têm netos. Foram rever onde antes passavam as férias, e o combinado era uma noite por lá. 


Na cidade, todos os entretenimentos ficaram saturados, e por que não rever o espólio? Assim fizeram os dois irmãos e as outras duas que quase não se encontravam.


Uma lata de querosene, aberta e furada, fez lembrar as castanhas assadas no oitão. Alguém trouxe a chave? Quebraram a fechadura antes deles chegarem, crime só percebido depois de feita a pergunta sobre a chave.


O matagal, tomando conta do alpendre, nem chamou mais a atenção depois que um carcará cantou naquele fim de tarde e de mundo. Deve ser um da centésima geração que teve o pai abatido, pensou o autor do disparo.


O cavalo baio não deixou descendentes, mas é lembrado como o professor das aulas de equitação. Manso de dar dó, às vezes era confundido como preguiçoso, já  que só corria quando alguma égua lhe dava motivos. 


O desmoronamento do curral de pedra também os deixou tristes. É melhor dormirmos nos carros. Sem energia elétrica, só restou formar um semicírculo no pátio limpo pelos pedregulhos inibidores da vegetação. Podemos ficar? Sim, respondeu uma lagartixa, balançando a cabeça numa brincadeira que faziam quando meninos. 


As cadeiras foram arrumadas, deixando o fogo brilhar no centro. A noite prometia um frio na medida certa para o vinho escolhido a dedo. Taças, caixa com gelo, tudo planejado e executado nos mínimos detalhes deixando-os confortáveis para ensaiar alguns sorrisos.


A cela, transformada em celeiro depois que o tio louco foi encontrado enforcado entre as barras, permanece em pé com a porta cheia de desenhos feitos pelos cupins. Era ali que os avós não percebiam o esconderijo ideal para as traquinagens sexuais a convite das domésticas. 


A papada do irmão mais velho balança ao colocar a carne para assar. Ele é especialista em cuidar da grelha, por isso se sente responsável em arquitetar o plano de voltarem mais vezes. 


As noites de lua cheia, enfeitada pelos trabalhadores plantando batatas em plena madrugada, foram relembradas por volta da segunda garrafa. Era a época ideal para enfiar os ramos no leito do rio seco depois das enchentes de junho. Eu adorava voltar em cima dos jumentos na disputa pelo primeiro a chegar de volta ao curral, disse um deles que não me lembro quem foi. 


Um violão viria a calhar se não tivesse sido proibido. Vamos ouvir a música das corujas e a orquestra dos sapos, jamais algo que lembre a selva de pedra em que vivemos. 


A serra, ao longe, escondia a lua por chegar. Depois que conheceram ambientes luxuosos, os quatro se dão por satisfeitos em estar no meio do mato vidrados no fogo entre as três pedras improvisadas, servindo de churrasqueira. 


Os filhos, distantes, só têm tempo para eventos compatíveis com os da sua geração, por isso não os acompanharam. Além da carne, queijo de coalho intercala o churrasco dando espaço para elogios culinários. 


Foram-se os avós e alguns tios, e os pais são relembrados pelo rigor da educação persistente em deixá-los aptos para sobreviverem confortavelmente. Nessa hora, veio-lhes a lembrança da queima dos xique-xiques ao meio-dia, traumas para os dois obrigados a fazer sem reclamar. Ou estudam ou vão assar a comida para o gado, surgindo daí o amor pelos livros. 


Andando pelo riacho seco, uma raposa sente o cheiro da carne assando. Ela não é suicida para tentar aproximação, e fica apenas fazendo pegadas que serão varridas pelo vento antes do amanhecer.


No dia anterior, um bando de fugitivos passou por ali sem que fosse apurado os autores do arrombamento. Por um dia, não ficaram reféns da bandidagem. O receio de imprevistos desagradáveis era atenuado pela certeza de que estavam bem armados. Onças detectaram a presença de possíveis presas, mas o fogo avisava um risco latente. Já estava se apagando quando entraram em seus automóveis para se deixarem levar pela suave embriaguez e o descarte das preocupações.


Parecia que estavam nascendo junto com a brisa de um novo dia prometedor de calor ventilado. Providenciaram o café debaixo do prolongamento da capota do motorhome num bate papo recheado com as últimas notícias. Vocês viram a polêmica que foi gerada na abertura dos jogos olímpicos? Ouvi falar que satirizaram com a última ceia de Jesus Cristo. O sol, espalhando a certeza de mais um dia sem chuva, foi testemunha das duas irmãs retornando da oiticiqueira e tomando parte na discussão. Aquilo foi um crime contra nossa religiosidade. Calma, disse o professor. O que está havendo é um mal-entendido. Ovos com inhame foram servidos além de algumas guloseimas que trouxeram pré-prontas. Mal-entendido? Sim, pois  aquela representação não tinha nada a ver com a Santa Ceia. 


O mais velho, ao argumentar, fumava o cachimbo que trouxera de propósito para aquela ocasião. Ei, esse cachimbo era de vovô, não era? Sim, ele me deu quando ganhou um novo, no aniversário dos oitenta anos, lembram? 


Não tem nada a ver com a Santa Ceia? Uma delas juntava os restos do desjejum e já apressava o retorno. Desembucha! "A ideia era ter uma festa dedicada aos deuses do Olimpo, ideia muito adequado para a abertura das olimpíadas", disse o professor esclarecendo ainda que a tela inspiradora tem o título de A Festa dos Deuses a qual representa a chegada de Dionísio, o deus do vinho e das festas. Todos ficaram atentos para que a explicação corresse solta. "A obra teria sido produzida entre os anos de 1635 a 1640". Uma casaca-de- couro começou a cantar em cima de uma Jurema tirando um pouco a atenção do professor que olhou de soslaio e continuou: o artista holandês, Jan Harmenszvan Bijilert, deve estar se mexendo na cova por sua obra ter sido confundida com a Santa Ceia de Leonardo Da Vinci. 


Duas horas depois, um furão chega perto do fogo apagado e encontra um churrasco esquecido no meio das cinzas. Ele nem desconfia que ao longe as atenções estão voltadas para a judoca japonesa, berrando por ter perdido a luta e a medalha; o rio Sena continua poluído?; Janja brilhou mais do que a tocha olímpica? O animal não sabe nada disso e nem tem raiva de quem sabe, apenas sai correndo com o espetinho sujo de cinzas entre os dentes. 


O quarteto já programou... bem, o mundo está muito ocupado com as olimpíadas para querer saber quando será o próximo churrasco.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 02.08.2024 - 04h20min.

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