sábado, 3 de fevereiro de 2024

NÃO ADIANTA SE REBELAR

 


NÃO ADIANTA SE REBELAR


Ficou boiando no tempo. Olhou para a barba por tirar e achou que isso era a coisa mais importante da face da terra de tão desanimado que estava. O único afazer restante era ficar contando quantas horas faltavam para a próxima refeição. 

Observou o semblante da mulher passando sem a blusa mostrando as costas marcadas da surra que ele lhe havia dado só para sentir qual reação teria ao vê-la cabisbaixa sem poder expressar uma reação contrária. Foi determinação dele que ela ficasse desfilando com aquelas marcas significando o domínio do macho em seu território caseiro. 

Vamos ao hospital, disse a mulher se sentindo mal, e iremos passar na casa da minha sobrinha. Uma garota de dezessete anos sozinha numa cidade grande precisa que tenha apoio logístico. Pegue esse saco, caso precise vomitar, faça dentro dele, foi a recomendação da tia ao recebê-la no carro. O saco cheio de vômito foi atirado na lixeira em frente à urgência enquanto ele, chefe estou chegando em quinze minutos. 

As coisas aconteciam em nome das experiências vivenciadas em comum acordo. Cada um fazia uma atrocidade com o outro para experimentar até que ponto ia as suas loucuras transcendentais, era assim que as nominavam. 

No dia anterior, tinha surrado-a com um cipó de boi recomendado pelas padrão número dezoito do clube dos sadomasoquistas do qual faziam parte. Ela também usava os mesmos apetrechos para fazer da relação algo mais do que um casamento estabilizado. 

No ensaio geral, ele foi logo fazendo um solo na guitarra, e ainda bem que estava sendo gravado para posterior composição, inspirado quando algo o chocava, como foi o caso dos vômitos a cada quilômetro expelido pela pseuda-sobrinha. 

No outro dia, ela foi embora curada da dor no estômago que lhe deixava com a sensação de um ferro quente rasgando por dentro. Tinha que organizar os documentos para a matrícula na universidade, disse mexendo nas argolas rodeando a orelha. 

O calor do verão não o deixava sair de casa nem de madrugada para se exercitar. Tentou se enganar dizendo que estava feliz, pois soube que a mente acredita no que está sendo dito, mas o resultado foi pífio. Percebia que havia sido domado pelo trabalho burocrático que tanto odiava e ficou repetindo, ainda hoje, que não existe trabalho bom levando consigo mesmo esse pensamento para a caminhada na orla. Mais uma vez, enfrentava as dores da rotina que o impulsionava para o simples caminhar em busca da euforia da passageira dopamina. A cada passo, um dizer de estar refém também de um corpo exigente por movimentos. 

Um piquenique em pleno engarrafamento o faz ter esperança de que inovar mais um pouco é necessário para não morrer desse tédio que lhe entrega a serenidade para entender que o sucesso de passar em medicina aprisiona a jovem sobrinha em afazeres e mais responsabilidades a ponto de não apreciar a beleza da floresta com cheiro de mata molhada tão comum no discurso de Henry David Thoreau. 

A multidão continua se afunilando no conta-gotas da moda, e ele está indo no papel de mais um nessa proposta de multidão padronizada pela subsistência imperialista tão natural no ser. A diferença é que ele sabe disso e nem mais se esperneia para mudar o mundo, pois a alavanca das mudanças faz tempo que foi acionada pelos segundos assassinos bastando apenas se conformar com sua pequenez de ser prisioneiro dos vinte e um por cento de oxigênio terrestre.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.02.2024 – 06h46min.





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