sábado, 4 de março de 2023

POR TRÁS DOS NOMES - Heraldo Lins





POR TRÁS DOS NOMES


Choveu muito ontem e quase não dei importância por estar protegido e fixado na terra, mas chuva em aeroportos não é a mesma coisa. Tem gente que até chora, como aconteceu na minha última viagem. O "bicho" arremeteu e ficamos sobrevoando a noite por um bom tempo enquanto o vento e a chuva não nos deixavam pousar. Alguém que chorava disse que olhou para mim e me viu tranquilo. Sim, quando chegar a "hora" pode se espernear que não tem jeito, então é melhor ir sem alarde, respondi quando perguntado e acrescentando ser importante que o piloto não tenha brigado com a mulher antes de sair de casa, porque se ele tiver uma tendência suicida, adeus “Maria Preá.” 


Apertem os cintos, disse a voz aparentemente tranquila lá pelo alto-falante. Nessa hora, eu traduzi que deveria apertar também os quarenta e três esfíncteres existente no meu corpo. Claro que isso acontece naturalmente, e ficaria muito deselegante ouvir a aeromoça dizer: aperte o esfíncter principal,  já que no "pacote de apertar o cinto" já vem incluída essa recomendação. 


Houve aplausos quando a aeronave pousou e acho que só eu não bati palmas. Poderia ser fingimento patrocinado pela companhia para fazer valer o preço da passagem, e como sou ator, vejo em tudo uma encenação. No teatro da vida, neste momento, está acontecendo vários voos, gente morrendo e outros nascendo e o moinho da produção humana jamais iria parar por mais uma queda de avião, porém uma coisa é certa: se a pessoa não tem fé, peça emprestado. O ar não tem cabelo para o passageiro se pegar, e naquele sufoco só uma força além da minha compreensão pode ser objeto para fixação do pensamento. No momento, não me veio nenhuma ideia voltada, por exemplo, para pagar boleto. Toda a atenção fica voltada para os ruídos da aeronave. Um tranco é ouvido. Ainda bem que li sobre o barulho do trem de pouso baixando. Dá a impressão que algo está se quebrando e logo sendo consertado.


Para quem gosta de adrenalina, é uma boa pedida. Naquele momento, não percebi gente indo ao banheiro, até porque não tem como sair nada, entretanto seria uma boa opção tentar se esconder da morte.


Apenas as pessoas das filas de um a sete devem ficar de pé, ouvi novamente através da voz metalizada, agora sim, com pausa de calma sem disfarce. Eles melhoraram essa parte. Antigamente quando o avião aterrissava era um deus nos acuda. Todo mundo querendo sair daquela lata de sardinha e até empurrões havia. 


Observando a cara do comandante no final, é como se ele tivesse saído de uma grande farra. Seu ar de satisfação foi comparado a de uma prostituta ao receber seus honorários. O mais jovem saiu com semblante igual a cachorro que cai da mudança: meio desorientado. O mais importante é que ninguém vê os pilotos usando óculos de grau. Uma vez tentei ser piloto, todavia ao estudar os ventos e seus efeitos na fuselagem do avião, desisti. Todos os dias, eu olhava para o céu e ficava imaginando pousando no meio de uma tempestade, e olhem que nem tinha começado as provas. São tantos testes que o início de carreira acontece aos dezoito anos quando tudo está funcionando perfeitamente, principalmente visão e audição. Nem quero pensar num comandante pedindo para o copiloto lhe entregar um lenço para desembaçar as lentes dos óculos, exatamente quando outro avião viaja no mesmo risco de colisão.  


Não sou religioso, mas, verificando o meu roteiro, percebi que embarquei através do Santo São Gonçalo do Amarante, diretamente para os corre-corres do apóstolo São Paulo num grandioso marketing embutido.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.02.2013 - 09h35min







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