domingo, 3 de julho de 2022

FALSO SOSSEGO - Heraldo Lins

 




FALSO SOSSEGO


Neste domingo, a cadeira preta serve de apoio para as pernas ficarem pro ar, sem, necessariamente, ficarem no ar. Ali perto, um grupo de gritos pagodeiros entristecem até as nuvens, enquanto o chão sente cócegas com as rodinhas passeando em seu piso. A cadeira pede que elogiem seus braços, e reclama que se sentia mais feliz quando tinha um vendedor para valorizá-la, por isso está insatisfeita nessa nova residência. A filha digitando em seu celular nem se dá conta que há muitos seres vivos ao seu redor, inclusive, a geladeira e o fogão sempre comentaram essa falta de percepção. 

Cada um desses objetos permanece indiferente ao marido deitado na cama larga assistindo televisão. A TV só não fica triste porque sempre há filmes, novelas e shows para diverti-la. 

Olhos abrem-se procurando algo mais interessante para relatar, mas a disposição está de folga neste final de semana. Nada surge num raio de quilômetros, e os minutos precisam ser preenchidos nem que seja com a preguiça do bicho-preguiça pendurado na árvore do jardim. A câmera vai até lá para filmá-lo dormindo. O tempo passa e a preguiça não passa de um bicho em seu estágio ativo de longos períodos de sono. 

Na falta de notícias chocantes, a atenção volta-se para a unha do dedo mindinho sendo roída, e a do polegar, também. Um banho, depois da meia-noite, ficou registrado como sendo o acontecimento mais emocionante das últimas horas. É dia de folga, e nada melhor do que folgar na leitura acompanhando o clima de sossego. 

Três colheres esperam o restante dos talheres para fofocarem. Nesse almoço privado da família, ninguém foi convidado, nem mesmo o feijão. Hoje deram férias a ele, ao arroz e a carne. Quem chega fumegante é um peixe na panela trazida pela cozinheira. Os pratos de vidro também se aproximam achando que irão brilhar, e de repente se sujam de caldo. Poderiam ter nascido pérolas, mas os seus destinos estavam traçados antes mesmo de serem fundidos. É melhor viajar até a pia e lutar contra o odor da tilápia vítima, do que ficar se quebrando no porcelanato farto de poeira. 

Nessa hora, uma visão surge, mas logo é descartada. Hoje não é dia de fantasma nem de doença. É domingo, dia de futebol, churrasco e cerveja. É melhor fechar a agenda somente com diversões. Os problemas devem retornarem somente amanhã, e a preocupação de hoje deve ser em adiar a síndrome da segunda-feira. 

Ele se levanta e vai ao banheiro olhar se o espelho está bonito. O reflexo é o único ser naquela casa que não mente, mas a verdade simétrica nem sempre é olhada. Se não pode mentir, o reflexo pode se omitir, ficar em cima do muro, assim não desagrada. 

Ao voltar, a correia da sandália quebra-se sem ver-nem-pra-quê. Fazia parte do roteiro artístico ela se romper, não se importando nem um pouco que hoje não é dia de comprar correia. O marido, alterado, pega a furadeira e conserta-a colocando um parafuso junto com durepoxi, e a sandália, que pensava ficar descansando, volta para os pés torturadores. 

A filha sai do seu êxtase "celulárico" e aplaude o pai engenhoso em consertar sandálias. Poderia comprar umas novas, entretanto até elas se quebram, adoecem ou vão parar nas mãos dos ladrões de sandálias. Ninguém rouba uma velha! Pensando assim, tudo na sua casa são velharias compradas nas relíquias ou reaproveitadas. 

Uma sonolenta blusa vermelha surge caminhando e diz que dormiu bastante, e que à noite irá assistir filmes. Ele pergunta se ela tem algum sapato com salto quebrado, pois hoje pegou no tranco para consertar calçados. Não, não tenho! Acalme-se, diz a blusa com a mulher dentro. Nem tinha reparado nesse detalhe que a esposa estava dentro da blusa. Na penumbra do casarão já está acostumado com frutas sendo descascadas, lâmpadas se acenderem, torneiras derramarem-se, isso tudo sem a interferência humana. Fatos normais são estranhos, para ele. 

Pronto! disse ele. É que chegou a coceira na mão direita querendo fritar batatinhas, porém acha melhor atender ao tremor do olho esquerdo pedindo crepioca. Cada sinal corresponde a um desejo a ser atendido, e para ele isso está dentro do esperado. 

Já se acostumou em compartilhar multiversos. Tem até medo de voltar para o mundo real e deixar de ver o sol produzindo chuva e as nuvens, claridade.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.07.2022 - 09:17






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