sexta-feira, 18 de março de 2022

AGORA É TARDE - Heraldo Lins

 


AGORA É TARDE


Está com câncer. Antes da despedida, é normal a sensação de choro. Não se tem garantia de que ela irá para sempre, o que se sabe é que a cirurgia será na próxima semana. Alguns esperançosos reformam o quarto para a recuperação. Outros transferem os utensílios para lavar a roupa com mais eficiência. Durante a vida inteira lavou roupa a mão, agora é que alguém diz: é melhor mãe ter conforto. E compram uma máquina, à prestação, mas compram. 

Estão dividindo a conta quando o mais gordo diz que o plano de saúde é ele que paga, portanto, deveria ficar de fora do racha. O bate-boca tem início só parando quando o mesquinho se conscientiza que aquela despesa poderá ser por pouco tempo. Mãe vai morrer logo, aí você poderá recuperar o investimento vendendo a casa que lhe cabe. Não, Deus me livre de mãe morrer! Mas ela vai custar caro para ficar boa. É melhor  deixar ela morrer, ou não? pergunta a costureira em tom de ironia. Você sempre foi inconveniente. Dá para deixar de fazer graça! retruca a chefona do clã, como é conhecida e respeitada pelos irmãos. 

No hospital, a paciente não pode mais receber visitas, e ao lado da acompanhante, no primeiro andar, avista filhos e filhas acenando. Os que ficaram no interior do Estado, não sabem que é câncer de pulmão, nem vão saber tão cedo. Têm “problemas na cabeça” e, com certeza, surtarão ao saberem.

 Naquele aceno, o mais velho lembra-se das surras que sofreu por roubar leite em pó. Achava bom comer o leite dos mais novos, e quando a cancerosa ia dormir, à tarde, ele, sorrateiramente, subia no armário e surrupiava uma colherada do artigo de luxo. Os outros, sem coragem para fazer o mesmo, assistiam de longe, tanto o furto quanto a surra.

 Eram doze filhos ao todo. Restam seis. Alguns foram mortos ao se envolveram em conflitos de terra, outros, vítimas da mesma doença da mãe. O restante da ninhada recebe a bênção para que seus descendentes não tenham o mesmo destino. 

Épocas difíceis chegam à memória da paciente. Lembrar-se da viagem que fez na condição de retirante. Vieram de longe para outro sítio distante. Seu sonho era arrumar um casamento para sair do “cabo da enxada”. Conseguiu, e o desejo de continuar vivendo quase ia por água abaixo quando o marido disse que era para ela ir ajudá-lo no roçado. Queria que uma cascavel lhe picasse, mas limpar mato não era seu propósito. Preferiu parir doze, a ter que pegar no pesado. 

A paciente soube que o filho pedreiro se negou a reformar o quarto. O dinheiro da aposentadoria foi usado para contratar um pedreiro de fora. Esse desgosto foi mais um dentre tantos outros. 

O marido não ajuda na reforma. Seu dinheiro só dá para pagar os dezesseis tipos de remédios que ingere diariamente. O marcapasso está precisando ser trocado, e aí mais despesas, mais despesas. Ele, também, pouco pode fazer. 

O economista faz as contas de quanto custa manter o pai vivo. Quem pode, contribui, quem não pode, permanece na condição de miserável para não ter que fazer força e pagar pelo luxo de possuir pais velhinhos. Dizem que o preguiçoso puxou à mãe. Para ele, pouco importa essa relação familiar. Um sono depois do almoço é mais importante.  

A chefona se casou com um homem rico, porém, prefere exercitar seu sadismo deixando a família desamparada. Quando tem um motivo, ela exerce seu poder para pressionar os menos estudados. Façam alguma coisa por mãe, grita ela do alto da sua ligação de vídeo.

Durante a vida inteira, a relação de animosidade sempre pairou entre os irmãos. Os denunciados sentiam a mão pesada da cancerosa. Eram "enredos" chegando a todo instante, e a mãe nem queria saber se era verdade. A regra era bater primeiro para depois perguntar. Ela não tinha tempo para conversar com os filhos. O “pau cantava”. Quem fosse injustiçado, procurasse falhas nas outras denunciantes, entregando-lhes para vê-las apanharem, também.

Na hora da tapioca, sempre havia briga para saber quem ficava com as sobras dos farelos. Mesmo quente, era salpicado de goela abaixo. Choro era o que não faltava naquela meninada. Um deles teve sua mão presa entre a porta e as dobradiças para aprender a nunca mais roubar. Os outros viram, pela primeira vez, o pai torturar um deles. O pai era manso por natureza, domesticado nas leituras da sala, mas criado pegando “barbatão” na serra. Pouca conversa e muita ação para dar conta de doze. Não iria permitir um filho ladrão.

A família está unida novamente, dessa vez, sem torturas, fome ou brigas, apenas com uma união tumultuada em torno do câncer da mãe. Hoje é que percebemos, dizem chorando, o quão era batalhadora nossa querida mãezinha.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 17.03.2022  − 09:43




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