quinta-feira, 17 de março de 2022

UM DIA SEM UM CLIQUE SEQUER - Heraldo Lins


UM DIA SEM UM CLIQUE SEQUER


Tiraram-me as armas. Acordei sem internet e foi aí que percebi o quanto o mundo real é estático. Sem o que fazer fui verificar a realidade como me diziam que era. Antes eu pensava que na beira mar sempre havia uma garota de biquíni sorrindo. Ao perceber que não tinha nenhuma mulher sorridente por lá, corri para o restaurante para ver mulheres bonitas comendo. Ao adentrar ao recinto, vi um garçom barrigudo com uma toalha no ombro, varrendo. Pensei: deve ter havido um probleminha na realidade advindo da falta da internet, já que nestes ambientes sempre vejo pessoas se alimentando o tanto quanto, na praia, os biquinis desfilam noite e dia. Mas não, era isso mesmo! As pessoas estavam desestimuladas para permanecerem comendo, divertindo-se ou reunidos em família.   

Minha vida, também, ficou sem sentido. Fiquei imaginando se só eu estaria vivo fora da rede, ou seja, os demais figurantes dos vídeos só existiam graças à construção dos algoritmos. Liguei para a empresa que dá suporte e escutei uma voz dizendo que no momento estava fora do horário de atendimento. Como? se quando comprei o pacote estava dizendo que a assistência técnica era vinte e quatro horas por dia? 

Liguei para o PROCON para defender meus direitos. Depois de meia hora apertando números e sendo transferido para outros setores, falei com alguém. Ele me disse que eu tivesse calma e se identificou como sendo o faxineiro. Perguntei se havia alguém dando expediente, e logo fui informado que todos haviam ido à companhia que dá suporte técnico à rede, ver o que estava acontecendo com o sinal. 

Senti-me mal. Um enjoo me levou ao plantão do hospital. Não havia nenhum médico atendendo porque o sistema, como era de se esperar, estava fora do ar, consequentemente, os protocolos recomendados para cada doença, só com a internet funcionando. Quando ia saindo fui assaltado. Uma mulher apontou-me uma arma e disse que sem a internet sentiu-se sozinha, e queria meu amor a todo custo. Ou dá ou morre. Não morri. Se fosse antigamente, antes da emancipação feminina, seria uma assaltante, mas depois da igualdade de gênero, as mulheres voltaram a contra-atacar. Até achei bom voltar aos tempos do primitivismo. Havia esquecido a sensação de contato com alguém de carne e osso.   

Voltei para o apartamento e fui falar com minha esposa sobre a dependência que estávamos enfrentando em relação ao mundo virtual. Percebi ela totalmente estática, e foi aí que me lembrei que a comprei numa feira de tecnologia. Por conseguinte, seu software tinha, também, “dado pau”.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.03.2022  − 08:19



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