terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

COVARDIAS E DISSIMULAÇÕES - Heraldo Lins

 


COVARDIAS E DISSIMULAÇÕES


Assobia baixinho ao preparar os cartuchos para a caçada do outro dia. Suas necessidades o obrigam a sair pela caatinga “enserrotada” em busca dos mocós. Essa farra do café, toda tarde, não é do seu agrado. Muita gente roubando o suor do seu rosto, e ele fingindo gostar. Olha para o descampado até onde o olho alcança, e vê apenas uma poeira fina anunciando mais um mês de seca. Ele fala consigo: estes vizinhos, parece que não têm o que fazer. Isto é invenção de Bastiana para gastar dinheiro. 

Na sombra do alpendre, os palestrantes saboreiam o café com bolachas contadas.  Estão ali para ouvirem, no rádio, o resultado do jogo do bicho, contarem causos e verem Bastiana sorrir. Ela também adora jogar nesse maldito bicho. Ai dele se reclamar! A última vez, ameaçou voltar para à casa da mãe. 

Tem vontade de usar um dos cartuchos na cabeça de Serafim. Desconfia que a mulher simpatiza com ele. Durante o café, ela passeia pelo alpendre com roupas de festa. Já se pegou por várias vezes imaginando abrir a cabeça deles com um machado. Depois, jogaria os pedaços para os quatro cães que cria. Seu silêncio não denuncia seu ódio. Serafim interrompe os devaneios do compadre dizendo: Ô! vaca bonita! O compadre quer trocar no meu touro? Eu dou de volta o potro preto, aquele com mancha branca na testa. Não tenho para troca, não! É a única que está parida, e Aninha adora leite, responde a Serafim e volta a pensar: Poderia colocar estricnina no café desse Judas, mas muita gente iria morrer, inclusive, aquela dissimulada. 

Tome mais, compadre, disse Bastiana, parece que não gostou do meu pretinho!? Seu marido continua... Se pudesse abandonaria tudo, mas tem Aninha. A menina é minha razão de viver. Serafim responde a Bastiana: Gostei muito do seu café, comadre, amanhã trago bolo da moça. No rádio anunciam: E atenção para os resultados de mais um sorteio. Vinte e cinco cartuchos estão no bisaco quando Serafim sai rasgando sua aposta infrutífera.

 O sol se pondo sem a esperança de chuva. A mulher, taciturna, volta para a cozinha. Algumas galinhas já subindo no poleiro, o marido volta aos seus devaneios:  Seria mais fácil sufocá-la durante a noite, entretanto, é a mãe de Aninha, e a filhinha não me perdoaria. Leve a garrafa, Bastiana, você sempre esquece. Traga você, não só sou eu que tenho mão nesta casa. Em silêncio ele grita: De hoje ela não passa. Acho que vou esfaqueá-la. 

Está na hora de apartar o gado. Os meninos foram embora com os pais e Aninha o acompanha na ida ao curral. O pensamento do pai continua violento:  Ah! se as coisas não estivessem tão apertadas, contrataria o filho de Ezequiel. Ali tem coragem! Dizem que vai matar gente até no sul do país, porém, é mais barato fingir que a arma disparou. Ninguém vai desconfiar que arrombei o rosto belo de Bastiana, sem querer fazer. Digo que fui guardar a espingarda no gancho da rede, e aconteceu. 

É interrompido por aninha: Pai! posso ficar com a bezerra amarela? Já é sua, eu lhe dei, lembra-se? Mãe disse que o senhor fica só me enganando. Já dei, está dada. É sua, num já disse, menina! .....Ele sabe que tem facilidade em dissimulações, e iria usar este dom para escapar da prisão. Venha alisar a bezerra, ela gosta de você. 

Fica planejando que poderia fazer um disparo acidental, também, contra Serafim. O problema é que sempre tem gente por perto, futuras testemunhas. Pai, ela gosta de lamber minha mão! Tenha cuidado para não pisar no esterco mole. Olhe para o chão quando andar. Quer aproveitar enquanto Aninha tem pouca idade. Depois de grande ela vai saber que o pai era “manicaca-acornalhado”. Ai! tem formiga aqui! disse aninha coçando as pernas. Saia daí! Vá para cima daquela pedra! 

A família janta com Aninha contando sobre a cobra que o pai matou. Você sai que horas para a serra? Pergunta Bastiana.  Só depois que tirar o leite! Posso ir com o senhor, pai? Ele não responde de imediato. Está pensando nas provas da traição. É estranho encontrar sempre Aninha dormindo quando volta das caçadas. Você não pode ir porque tem cobra que pega menina bonita. Com a filha em casa, a mulher não tem como o trair. Será seque deve anestesiar a filha? Se ela estiver acordada, conta tudo sobre Serafim.

Depois do leite tirado, sai para o planejado. A escassez de capim leva os roedores para mais longe de suas tocas. O tiro certeiro derrubou já o terceiro mocó de cima do serrote. Acredita que é o suficiente para o resto da semana. Pensa em Bastiana, em Aninha. Não escutou nenhum latido dos cães que deixou com elas. Deve estar tudo em paz. 

Outro tiro ecoa para as bandas dos serrotes. Bastiana dá um leve sorriso ao escutar, ao longe, mais um estampido, mais outro e outro outro. À Aninha, não contaram como o pai morreu. Desconfia que a cobra que pega menina, pegou o pai. Bastiana, alegre, se arruma para o enterro. Em público, até chorar ela consegue. 

Na semana seguinte, o filho de Ezequiel confere o pagamento e aperta a mão de Serafim: O caminho agora está livre. Se precisar, meu patrão, já tem meu número, e sai assobiando baixinho.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.01.2022  ─  11:42

Ouça-a, na voz do autor:

https://www.youtube.com/watch?v=8idTtZRQ7tg&t=19s



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