quinta-feira, 10 de junho de 2021

O ESQUECIDO SABE TUDO - Heraldo Lins

 


O ESQUECIDO SABE TUDO



Mais um dia desmemoriado. Não totalmente, mas com falhas na lembrança. Preciso estar sempre relatando o que estou fazendo para não me perder no tempo. No espaço não me perco porque me deixaram enjaulado dentro de casa. Há receio que me perca na rua. Mesmo dentro das calças permaneço perdido. Na selva de objetos não sei o nome de alguns. O nome da panela consigo dizer porque amarrei uma fita nela. Garfo, colher e aquele negócio de cortar aprendi ainda menino, por isso não esqueço. Olho para baixo e não sei o nome do líquido que sai no meu cano. Esqueci o nome daquilo que o papel higiênico limpa. Na parte de cima da mulher há dois negócios que eu sempre gostei muito. Sei que é diferente de uma pedra, mas falta-me dizer o nome. Ah! Lembrei-me: mamadeiras.


Sei de tudo, mas perdi um pouco a capacidade de nomeá-los. Nessa enxurrada de água na memória nem me lembro de quem me fez o mal. Nessa crise recebi um telefonema de uma mulher querendo falar com alô. Se alguém avistar alô digam que a mulher que ligou para mim quer falar com ele. 


Não sei o que é bom dia. Alguém disse esse troço e eu respondi perdoei-me. Acho que era pedindo esmola. Estava tentando me lembrar o que fazer quando dá uma dor na barriga. Será que tenho que assistir televisão? Liguei e nada de passar. Fui para o WhatsApp enviar mensagens e a dor continuou. Levantei-me do sofá e a dor passou. Olhei em volta e vi uma pasta amarela no meio da casa. Acho que foi alguém que entrou e deixou. O negócio tem um cheiro estranho. Nem sei para que serve. Deve ser creme de maracujá com Chantilly usado para melar as pessoas no carnaval. Vou guardar nesse fogão que congela. 


Ainda bem que me lembro que noite é quando tem lua. Só não sei para qual a serventia do escuro. O claro eu sei, é para acordar a gente pela manhã. Fico voando quando observo as pessoas olharem para mim e mostrar os dentes. Vi um gato fazer o mesmo com um rato. Eu saio correndo quando vejo uma boca olhando. Ser mordido não é bom. 


Ultimamente estou ouvindo uma pessoa tocar trombone atrás de mim. Quando olho não tem ninguém. São pequenos sons intercalados. Às vezes fica ligado direto: pó pó pó pó... A pessoa que toca em seguida joga perfume vencido. Acho que é assombração.                    


               


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26/04/2021 – 13:31

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