sábado, 17 de abril de 2021

“QUARTO DE DESPEJO” - Heraldo Lins

 


“QUARTO DE DESPEJO” 



O sonho dela era morar em uma casa de alvenaria com banheiro, quarto e cozinha. Também fazer o aniversário da filha estava em seus planos, mas a data passaria como tantas outras: somente no calendário. Seus braços desnutridos não conseguiram juntar dinheiro para o bolo. Sua condição de negra favelada não permitiu comprar umas panelinhas para presentear a filha que há muito lhe pede. Quem sabe se este ano a seleção brasileira ganha sua primeira copa do mundo, e os políticos olhem para as vítimas da favela do Canindé como os brasileiros olham para Pelé e Garrincha. Ela sabe que quem não conhece a fome jamais vai entender o conceito de desigualdade. Carregar, diariamente, cinquenta quilos na cabeça e a filha de dois anos nos braços é trabalho escravo. Compara com os empregos do asfalto. Estes são para os que não precisam catar papel na rua. São para os que puderam ir além do segundo ano primário, e que têm a pele clara.  


Ela leu num livro, achado no lixo, que a igreja difundia a ideia de que o sofrimento dos negros era como uma forma de purgar os pecados. Ela também leu que amaldiçoaram a África dos seus antepassados, e, para justificar a escravidão, os padres diziam que os negros eram descendentes de Caim. Para não esquecerem o assassinato de Abel, Deus os fez nascer escuros. Seu ânimo melhorou quando seu filho José disse: não fique triste mamãe porque quando crescer eu compro uma casa de tijolo para a senhora.


Suas angústias são diluídas no caderno que escreve. Depois de lavar a louça do almoço refugia-se na grama ao lado do rio Tietê dos anos de 1950. É lá que seu mundo vem à tona. A verdadeira senhora dos seus pensamentos desabrocha. Não aproveita para dormir. Para escrever assim o faz. O tempo sem lhe dar tempo, obriga-lhe a aproveitar ao máximo os momentos. Precisa sair da situação de indigente para não mais ouvir sua filha pequena dizer que quer comprar uma mãe branca. Ela pensa no suicídio. Vida dura essa que leva catando papel, ferro, cobre... só não cata felicidade. 


Se pudesse comprava um vestido bordado com as estrelas. Seus iguais não lhe ajudam, pelo contrário, chamam-lhe de negra fedida. Quando pode, compra sabão para lavar sua roupa, mas na maioria das vezes o que consegue só dá para comer um pouco. Após as minguadas refeições, fica triste ainda mais quando eles perguntam: tem mais mamãe? E não tem... 


No dia que adoece não come. Quando chove não dorme. As goteiras molham seu único colchão. Dói-lhe a barriga, e ela ver a cor, amarela, da fome. A única coisa que acumulou foi paciência, e essa, já está quase no final. Olha seus filhos cheios de pulgas. Quase não tem tempo para cuidar deles. A barriga a escraviza. Tem que correr em busca do ganho diário. A favela onde mora ela chama de “quarto de despejo” da rica São Paulo, e foi com esse título que Carolina Maria de Jesus publicou seu primeiro livro. Vale a pena passear os olhos lacrimejantes nessa realidade crua do sofrimento humano.  




Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 10/03/2021 – 10:23

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