quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

● MINHA AVENTURA NO PAPA MÓVEL - Kinha Costa

 




     MINHA AVENTURA NO PAPA MÓVEL

Sabe aquele dia em que você está se sentindo o cocô do cavalo do bandido? O dia em que um mundo de problemas pesa sobre sua cabeça e você não enxerga veredas que levem a uma solução? O dia em que, parece, os astros se alinharam contra você? Pois me encontrava exatamente assim, dormindo e acordando pensando como desatar todos os nós do mundo. Das guerras entre povos às guerras entre familiares; das desavenças entre amigos às desavenças entre irmãos; das birras entre crianças ao bullying entre adolescentes. Foi num dia em que estava completamente atordoada, desorientada, desordenada, confusa e com todas as linhas da cabeça cruzadas que, ao ser vencida pela exaustão da frustração e do estresse, finalmente tirei um cochilo, tive um sonho curioso, inusitado, inesperado e extremamente exótico.

Sonhei que estava em um encontro impensável, improvável e impagável com o Papa Francisco, em seu Papa Móvel. O carro de Sua Santidade, fugindo do modelo que normalmente aparece na televisão, se apresentava no estilo de trio elétrico nordestino. Ah, esse meu eterno gosto por alegria e celebração! A conferência era no pódio e nas alturas desse Papa Elétrico. Não descobri se era no carnaval de Salvador, no Carnatal de Natal, na Micareta de João Pessoa ou em alguma outra cidade brasileira que utiliza o sonoro transporte, em ocasiões especiais. Não deu pra ver porque não me concentrei no trajeto do carro e seu cortejo. O cenário do passeio não tinha a menor importância, pois tinha olhos somente para a figura imponente, distinta e ereta de Fantico. Intimamente ousava chamá-lo assim.

Encontrava-me sentada no chão do topo do trio elétrico, entre músicos, instrumentos, familiares e Sua Santidade. Francisco se encontrava a meio metro de distância, separado dos presentes por um estreito de água, que tinha a função de evitar que algum membro da caravana, pra lá de VIP, se jogasse nos braços do velhinho e amassasse sua impecável batina branca ou mesmo que algum beijoqueiro maluco avançasse o sinal e pegasse o seu gorro, igualmente branco, para selar um beijo estalado no cocuruto papal.

Via-me sentada no apertado espaço, de frente para o santo homem, com as longas pernas esticadas em sua direção, cobertas até onde a saia podia cobrir. Estava tão próxima que escutava os intervalos de sua respiração.

Tentando me acomodar, espremida pelos músicos e pelo desconforto do modelito, ouvi a mana mãe ralhando: - Cobre essas pernas, menina! Querendo me comunicar com o Papa e me sentindo fora dos padrões castos, olhei pra ele pedindo socorro e vi um rosto doce de olhar sorridente, fixo nas minhas desconfortáveis pernas, como quem dizia: - Que lindas! Meu Deus, eu não tinha mãos suficientes para tapar meus extensos membros inferiores. Ele continuava a olhar, como quem admirava um objeto bonito. Pensei na minha idade e lembrei-me do grupo musical As Frenéticas cantando Fonte da Juventude “... as pernas que um dia abalaram Paris, hoje são dois abacaxis...”  Andava em crise com as minhas, mas resolvi considerar o que via e divaguei: - Levando em consideração a idade de Francisco, pra ele, sou uma gata e as pernas que um dia abalaram a Praia dos Artistas, o Sol de Ipanema e o Vondelpark Amsterdã, a essa altura do campeonato, estão chamando a atenção de Roma! Esses pensamentos navegavam no trânsito do meu cérebro, quando a Sua Santidade, me olhou nos olhos e, disse: - Diga aí, Xará! Vixe! Tomei um susto danado, olhei até pra trás, para ver a quem ele se dirigia. Saquei que a Xará, era eu mesma. Caraca! Como ele sabe meu nome? Claro, o grupo era seleto, tinha passado pela máquina de raios X e todos tinham crachás de identificação. Achei muito simpático ele se dar ao trabalho de ler os nomes dos participantes e certamente me escolheu por ser seu feminino. E admirei a sua capacidade de falar, mesmo que frases simples, a língua das terras visitadas. Ele não só tinha se referido a mim em português, mas em nordestinês! Ele se mostrava simples, afável e acessível. Comecei a imaginar que teria chances de falar.

- O que lhe aflige, Chiquinha? Dirigiu-se mais uma vez a mim, carinhosamente. Desejava falar do que me apertava o peito, mas não sabia exatamente por onde começar, e ao mesmo tempo pensava no turbilhão de problemas do mundo, muito maiores do que os meus, que de repente encolheram, ficaram pequenos e insignificantes. Como iria ocupar o Santo homem com picuinhas caseiras, com desentendimentos periféricos, com desavenças fáceis de consertar?

Olhei para ele aceitando seu sorriso, me despindo dos rancores, jogando fora as mágoas, queimando as invejas e me desfazendo dos ciúmes. Me senti tão leve que esqueci as aflições. Não tinha nada pra confessar, reclamar ou pedir. Queria somente estar. Viver o encontro, que nunca fora planejado. Sorver todos os sorrisos, olhares, gestos e palavras de Sua Santidade.

Vendo-me muda e sabendo do pouco tempo que tínhamos, tomou a iniciativa, novamente: - Conhece a Oração de São Francisco? Oxê, se conheço! Falei achando que além da imponência de sua figura e do peso do seu cargo, ele ainda sabia ler pensamentos. Tinha um adivinhão em algum dos bolsos de sua veste religiosa, porque fazia dias que eu ouvia a dita oração, na versão cantada por Fagner. E como uma criança inflando o peito, tomei coragem e atravessei a pequena distância que nos separava. Acho que andei sobre água, pois não lembro de ter nadado ou molhado as sandálias. Peguei meu Ipod, tirei os fones de ouvidos, coloquei um no ouvido dele e outro no meu e liguei o botão. Como dois adolescentes curtindo um som maneiro, ficamos ouvindo a interpretação magistral do cantor cearense. Ele não conhecia a poesia musicada e gostou demais. Adorou! Acreditem, me pediu uma cópia! Respondi que seria um imenso prazer, que iria levar o presente no Vaticano. Ao mesmo tempo pensava: - Primeiro vou falar com Fagner. Essa gravação é antiga e não existe mais no mercado. Não posso fazer uma cópia pirata para o Papa! Cruz, credo! Acho que me animei demais, aumentei o volume da música e acordei soltando a voz em alto brado. “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz! ” Passado o sobressalto, tento decifrar o sonho.

Vivemos armados como se estivéssemos diariamente lutando em campos de batalhas. Hoje me desarmo e de peito aberto quero consolar, compreender e amar os meus semelhantes, mais do que ser amada, consolada e compreendida. Por que, como diz a oração, é dando que se recebe e é perdoando que se é perdoado. Essa foi a minha aventura no Papa Móvel, ou melhor, no Papa Elétrico.

..................................... Kinha Costa............................................................

KINHA COSTA

 

Atriz premiada, cronista, arte-educadora, repórter, reside na África do Sul.

Livros publicados: “Copa do Mundo – de Riachuelo a Johanesburgo”, “África do Sul: Um olhar brasileiro”, “Impressões de uma Matuta: Aventuras de uma brasileira nos países baixos” e “Duas corujas e um gato” (infantil).


Um comentário:

  1. Crônica maravilhosa, bem escrita, afetuosa. - Gilberto Cardoso dos Santos

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