terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A LEI - Naílson Costa

 


A LEI             

 

            - Era só fingimento! As mulheres fingem muito bem, inclusive na cama, e nós, homens, somos um bando de abestalhados - queixava-se Manoel do Mangue ao seu colega Zé da Bica.

            Manoel continuou com as suas lamúrias ao dizer que a Lei Maria da Penha era de lascar, muito boa pras mulheres, mas cruel demais pros homens. Contou que o que melou seu relacionamento com Zélia foi essa lei, que o obrigou a sair de casa no mesmo dia em que o Oficial de Justiça lhe entregou a intimação de uma decisão do juiz numa cautelar - Medida Protetiva de Urgência -, por causa de  uma  ameaçazinha feita por ele à sua companheira, Zélia.

            - Logo ela, cara, que morava no subúrbio, pegava duas conduções pra chegar à sapataria onde trabalhava de 7 às 19 horas, trabalho cansativo pra ganhar um salário mínimo. Eu a conheci assim, sendo explorada pela correria do lucro de seu patrão e  me encantei  pelo seu jeito elegante, educado e gostoso de atender os clientes. Nada disso, a bem da verdade, ela nem tinha aberto a boca ainda quando apareceu no radar de meu desejo. Acho que foi a necessidade e a vontade de me relacionar outra vez que me fez olhar para o belo desenho de seu corpo, seu jeito macio de andar, seu sorriso meigo, a suavidade de seus movimentos, a perfeição de seu ventre, seios e glúteos, a definição elegante de suas pernas e coxas, discretamente escondidas no apertadinho de seu jeans, sem falar da beleza de seus olhos. Os olhos, Zé, dizem mais e melhor do que as palavras, basta você atentar para o sentimento contido neles. Os olhos são um idioma universal.  Nós, homens, no entanto, é que, às vezes, não os interpretamos bem, deixamos nos  levar pelo silêncio sensual de uma possibilidade. E as mulheres sabem disso. São peritas na arte da sedução! E é  aí que mora o perigo, Zé !

            Manoel, 60 anos de idade, conhecera Zélia ali, na sapataria, onde ele gostava de comprar tênis e sapatos. Não tinha filhos, era viúvo, mas andava atrás de uma companheira, relacionar-se amistosamente com uma mulher que não fosse tão jovem quanto Zélia, de 25 anos. Todos os dias Manoel inventava uma compra. Conheceram-se e rolou uma química entre eles. Apesar da idade, ele era bem afeiçoado, corpo atlético, 1,80 cm de altura, cabelos elegantemente grisalhos, gostava de bons perfumes e de roupas jovens.  Ele tinha umas coisinhas naquele tempo. Era um empresário bem sucedido no ramo da exportação de camarões para a Europa. Tempo bom era aquele, diferente desse que o fazia resmungar nos ouvidos de Zé da Bica.

            - Só hoje, quando olho pra trás, percebo que Zélia queria mesmo era dar o golpe do baú, Zé. Onde já se viu, uma mulher jovem, sorriso fácil, corpo sarado, mulher sensual, linda, cooptada, assediada toda hora, querer um velho como eu? Ela queria um filho meu e agora eu sei o motivo daquele querer. Eu até queria ter dado esse filho a ela,  mas eu  temia o futuro. Fazíamos amor gostoso todos os dias desse início de relacionamento, e olha que ela amava aqueles momentos de prazer, ou fingia, e, se fingia, me enganou com a perfeição de seus atos, gemidos de orgasmos e elogios. Ela me dizia que nunca tinha gozado antes, mesmo tendo tido alguns caras, inclusive uma filha de um deles. Eu ficava feliz demais, me sentindo o macho alfa. As mulheres adoram homens viris, bons de cama, que descobrem facilmente o ponto G delas, que sabem fazer o moído direitinho e que são bem resolvidos sexualmente, e sempre fui craque nisso - gabava-se Manoel.

             Ele continuava a dizer a Zé que tinha se juntado com Zélia, depois de um ano e meio de encontros amorosos. Não ficava bem um velho e uma jovem moça viverem de motel em motel, dizia ele, mesmo Manoel sendo proprietário de vários imóveis na cidade. Em menos de seis meses que se juntaram, Zélia, no entanto, se mostrava infeliz e  vivia pelos cantos da casa a chorar o seu desapontamento com Manoel. Eles não tinham mais as caras  de felicidade dantes. Era comum os vizinhos ouvirem as histerias de Zélia, suas reclamações, seus surtos. Os olhos de Zélia continham o desespero dos infelizes, ininteligíveis os motivos para os vizinhos, mas suficientes para uma ligação anônima para a Delegacia da Mulher. Nunca se ouvia a voz de Manoel. Ele era discreto e vivia a dar bom dia aos vizinhos com a elegância dos gentlemen.

             Com a mesma rapidez da acusação de suposta ameaça feita por Manoel, ela providenciou, na Justiça, a revogação de sua medida protetiva de urgência, a que afastou Manoel de seu lar e do convívio com ela. Sentiu saudade dele? Depois de 45 dias fora de casa, a medida protetiva de urgência fora revogada a pedido de Zélia, e Manoel voltou correndo pros braços dela. A Lei Maria da Penha permite à vitima a desistência, a revogação da cautelar,  explicava Manoel  a Zé da Bica.

                        - Zé, Zélia tinha de tudo: Internet, redes sociais, liberdade pra até me trair, se quisesse. Nunca fui de pastorá-la. Nunca levantei a voz e nem  botei o dedo na cara dela, nunca dei um empurrãozinho sequer nela. Viajamos três vezes, nesses seis meses de convivência na mesma casa. Fomos pra Turquia e outros países, e, numa dessas viagens, até a filhinha dela foi com a gente. O mundo era pequeno pra gente.

            Manoel dizia de sua grande decepção com a Lei Maria da Penha. Foi uma grande humilhação!  Dizia ele que aquela Lei tinha estragado tudo, a sua boa convivência com Zélia, obrigou-o a sair de sua casa, casa não, mansão, situada no condomínio mais luxuoso e seguro de Recife. E os vizinhos a olhar Manoel a sair de casa por força da lei?! Ele morria de vergonha daquelas lembranças! Poxa, uma ameaçazinha, que nem ela mesma teve a convicção de confirmá-la perante a delegada, uma ameaça, que se fez, jamais se cumpriria, por falta de sustentação e de resquícios de viés criminosos presentes em seu caráter, como ele mesmo vivia a dizer. Manoel se mostrava homem manso, bom, solidário e simpático.

            E Zé da Bica ainda botava lenha na fogueira do ódio de Manoel por aquela Lei Maria da Penha. Disse Zé que essa Lei também obrigou um idoso de 82 anos a sair de casa no mesmo dia em que recebeu a intimação do Oficial de Justiça. Essa lei afastou de seu lar Seu Menezes, sem dó nem piedade! Logo Seu Menezes, ex-combatente, um herói da pátria; Seu Menezes que criara, sozinho, com tanto gosto, as duas netinhas, órfãs de pai e mãe, assassinados pela facção criminosa de tráfico de drogas rival, numa disposta de território. Suas netinhas, que depois de crescidas, não demoraram a se apossar da aposentadoria de seu avô, viraram putas e viviam a botar homens  dentro da casa de Seu Menezes. Seu Menezes passou de avô carinhoso a velho chato, ranzinza e intrometido. Elas foram à Delegacia da Mulher, com as suas parceiras de prostituição e fizeram um B.O, acusaram seu avô de agressão física e ameaça, e o juiz decidiu pelo afastamento do idoso de seu lar e do convívio com as meninas. E Seu Menezes, sem dinheiro e sem ter pra onde ir, vagou a noite inteira por entre a confusão de suas faculdades mentais, perambulou pelo silêncio triste da madrugada e foi encontrado morto na linha do trem ao amanhecer, segundo a contação de Zé.

            - Chega, Zé - ordenou Manoel do Mangue já aborrecido com essa história - eu pelo menos não matei ninguém!

            - Mas Zélia passou dois anos desaparecida e a polícia da Turquia descobriu que tinha sido morta, depois de uma exaustiva investigação internacional - rebateu Zé da Bica.

            - Na verdade, quem  matou Zélia não fui eu. Eu realmente me apaixonei por ela, mas fui obrigado a recrutar a filhinha dela de 8 anos de idade, para compor o quadro de novas meninas na Turquia. A Organização tinha a sua própria Lei, seus componentes não deveriam se relacionar passionalmente com pessoas não pertencentes a ela. E Zélia sabia que sua filha tinha sido levada pela Organização, mesmo eu sendo o chefe da filial do Brasil, e ela vivia a chorar, a me maldizer, a ameaçar abrir a boca, mas ela sabia também que, se fizesse isso, não só ela morreria, como também morreriam a sua filha, eu e todos de nossa quinta geração. Era a Lei da Organização! Então eu tinha que aconselhá-la, a pedir-lhe desculpas e acalmar as suas revoltas. Ela se apegava à minha promessa de logo logo devolver-lhe a sua filhinha, bastava cumprir as recomendações de silêncio da alta cúpula da Organização, mas a aflição nos seus olhos levaram às ligações anônimas, de modo que ela teve que se apresentar à Delegacia da Mulher. Nada falou a respeito do rapto de sua filha, teve medo, apenas disse que eu a ameaçava. De quê?, não sabia dizer, gaguejava, contradizia-se e seus olhos choravam copiosamente, pelo que eu soube. Deve ter inventado algo não grave para que a delegada requeresse a cautelar, sem provas  testemunhais, mas foi suficiente para o juiz deferir a medida contra mim. A Organização providenciou um advogado pra mim e outro pra ela  e a desistência por ela e o arquivamento da medida foi o desfecho óbvio. Ter sido afastado de meu lar deveria ter sido o ponto final de minha humilhação, mas o desdobramento das investigações internacionais e essa de a Lei Maria da Penha permitir que vizinhos metam a colher na briga de marido e mulher fodeu tudo - explicou Manoel do Mangue.

           - Vamos lá, vamos lá, tempo encerrado, em fila, todos pras suas celas - ordenavam os agentes penitenciários!

            Manoel Ferreira de Amorim, o Manoel do Mangue, empresário de exportação de camarão, até seu assassinato na Penitenciária de Bangu,  um dia após esse último banho de sol com Zé da Bica, cumpria a sua pena de 70 anos de reclusão por tráfico de pessoas, organização criminosa, cárcere privado, assassinato e ocultação de cadáver, só por causa de uma ameaça vazia, sem nexo, exposta no desespero dos olhos  de Zélia, uma mãe aflita com o rapto de sua filha e a sua condição de escrava.

(Nailson Costa, em Conto em Dó Maior, p. 22, Dezembro de 2020)

 

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