RECEITUÁRIO PARA O AMOR DOMÉSTICO
Valdenides Cabral
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
quase o princípio e o fim – quase a expansão...
mas na minh’alma tudo se derrama...
entanto nada foi só ilusão!
(Mário de Sá-Carneiro)
Dia após dia, ia à cozinha, tecer com fios de ovos o café da manhã. Abria a geladeira e sonhava marinar carnes, preparar molho agridoce, descascar pepinos para a salada. De sobremesa, mil folhas de caramelo para adoçar a vida enquanto maquina o jantar. Uma massa, um grand gateau e um porto para fechar.
Por noites a fio, entrava no quarto, arrumava cama, tomava banho, perfumava-se para um ato de paixão e o amor nadava feito peixe em lama escorregadia, lodo viscoso. A cama imensa onde o amor se movia, projetava insônias, arquiteta pesadelos. Seus olhos de solidão vagavam por entre as flores do lençol intacto. O sexo sucumbia à rotina dos anos.
Mas o amor a convidava para dançar “Vozes da primavera”, a ver um nascer do sol, a lua se banhando no mar. O amor a chamava para viverem o que lhes podia oferecer: a união de almas que resistiam e insistiam em se pertencerem para além dos corpos e do tempo.
O tempo e sua máquina de modificar corpos, destituir movimentos, instituir recuos. Restava o viço da alma na caminhada. Restava a cinza sob o incêndio da fantasia no templo do tempo a fechar as cortinas da sedosa pele, a turvar a antessala da memória, a conduzi-la à alomorfia definitiva.
Abre os olhos, caminha lentamente até a porta, percorre um interminável corredor que vai dar na varanda. Lá, o sol repõe o que está adormecido. Mas a paixão tirou férias.
Imagina um tempo em que se abismavam na efervescência cega das emboscadas juvenis, permitiam atalhos que os levavam, afogueados, às encruzilhadas dos corpos e o desejo era sinete ligado às terminações nervosas dos amantes, levitando em sonho no jardim das delícias, com os olhos atentos às chamas que os suspendiam. Tudo passou. Depressa, o amor lhe toma pela mão e mostra o que se perdeu pelo meio da casa, entre boletos e rascunhos de poemas que não mais conseguiu escrever.
O recorte da vida tão bem narrada e refletida nas expressões cheias de lirismo que a crueza da realidade se torna suave. Arte com as palavras! 👏👏👏👏🌹
ResponderExcluirPerfeito!!!👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾😍♥️🌻
ResponderExcluirE o vento...o vento? O tempo...o tempo? Nada extirpa de nós o que (já) sentimos. Prescrição: banho de banheira, bons goles de doces e provocantes memorias e um bom livro de cabeceira que deverá ser posto de lado quando tais memórias chegarem ao pinto de ebulição.
ResponderExcluirCorretor horrivel!!! * ponto
ResponderExcluirExcelente, Valdenides! Visceralmente poético!
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