Os Ossos do Papai
Junior Dalberto
Aquela quinta feira prometia, pensou Henrique e colocou o saco de lixo negro sobre o banco à sua esquerda no balcão do quiosque do Mocotó da Márcia que era também o nome da proprietária, uma negra de quarenta anos de idade, viúva, magra, pequena e de quadril largo, olhos grandes, negros e sedutores, bonita e mãe de um único jovem atarracado de dezesseis anos, um sarará de nome Edvaldo que a ajudava de dia na cozinha da barraca e estudava a noite, eles moravam em uma casa no distante munícipio de Paulista de onde saíam todos os dias às seis horas da manhã em um fusquinha azul clarinho, ano 1978, herança do marido, até o mercado de São Pedro no centro do Recife onde se localizava o famoso quiosque.
O pernambucano, de Nazaré da Mata, estava sedento por um copo de cerveja desde que saiu no pingo do meio-dia, com os restos dos ossos do falecido pai, do cemitério municipal da cidade dos maracatus sob um sol de quarenta e cinco graus à sombra. A cerveja desceu geladinha, suavizando a sede, mas, não passando a mesma; tomou mais um grande gole e ficou divagando, sorvendo mais goles e imaginando se esse prazer sorvido seria idêntico a sensação de quem chega ao paraíso quando se parte dessa para melhor. O prazer da cerveja gelada desceu de goela adentro matando a condenada da sede que o atormentava desde quando chegou a casa do sisudo do coveiro, com a ordem da justiça, para fazer o transporte dos restos mortais do falecido genitor para um cemitério do Recife. Um sonho da sua mãe Isaura que queria ser enterrada ao lado do seu amado marido. O cabra feio, vigia dos defuntos, nem colocou resistência, foi caminhando entre centenas de túmulos seguido por Henrique, lá encontrou o local coberto de capim, com uma placa velha e carcomida lia-se “Sebastião Cavalcanti da Silva, 1920 a 1976. Saudades eternas” e não dava mais para ler o resto da mensagem, já destruída pelo tempo e abandono da família. Quando o coveiro abriu o caixão, os ossos já tinham se transformado em pó dentro do que sobrara do caixão. Ele saiu e retornou com uma vassoura e um saco de lixo, depois pediu para o Henrique segurar o saco, mantendo-o aberto, enquanto o coveiro juntava cuidadosamente o que restou do genitor do rapaz fazendo um montinho sobre a madeira. Henrique olhava tudo aquilo sem nenhuma expressão, segurando o saco para receber o velho pai e levar para um novo destino.
Com o recém-falecimento da sua mãe, no último carnaval, decidiu cumprir o desejo dela com a ajuda de alguns amigos influentes, afinal, era tudo o que possuía nesse mundo, amigos. O dinheiro que conseguia fazendo bicos aqui e ali, só lhe servia para comer e se divertir um pouco com as raparigas nos bordeis do Pina ou do Centro, ou ainda pra tomar uma chamada de cana de vez em quando. Enquanto bebia o último copo da cerveja, decidiu mudar para uma dose de cachaça, além de mais barato era sua bebida predileta. Cerveja era só para diminuir a
sede inicial, e essa sede nunca acabava no calorento Recife. A cerveja só amainava a vontade de beber, mas o prazer de degustar uma cana de cabeça durava às vezes até o dia seguinte.
Na fase do lobo, dos seus quarenta anos, Henrique ainda se sentia bem jovem e como a maioria dos jovens sentia-se eterno. Ele era um grande sonhador, cabelos negros, moreno claro de olhos verdes, dizia que era herança do lado holandês da família. Naquele período estava prestando serviços para um amigo vereador da cidade de Recife na própria prefeitura, era seu bico atual. Galanteador, bonito e bem falante, já se comentava nos cafés da cidade do seu caso com a D. Carminha esposa do amigo vereador. Enquanto bebericava a quarta dose da cana, pensava como iria se livrar da mulher do amigo que não largava do seu pé, inclusive, deu para aparecer na pensão que Henrique morava, lá em Afogados, e isso poderia se tornar um problema.
D. Márcia olhou para Henrique e para o relógio impaciente, já fazia quatro horas que ele bebia na companhia do saco de lixo negro sobre o banco. No início, a cada gole oferecia outro para o saco, aguçando cada vez mais a curiosidade da magra proprietária, que passava a mão gordurosa nos negros cabelos alisados com firmeza pelo creme alisante Henê Maru e tratado com creme de tutano e babosa caseira, e depois enxugava o suor dos cabelos com a gordura do fogão no ensebado avental de chita vermelha com desenhos de enormes girassóis cobrindo um vestido negro de alças e na altura dos joelhos, um luto fechado que já durava dez anos desde que o pai do seu filho, o cabo Leocádio da honrada polícia montada de Olinda, morreu vítima de cirrose hepática.
A calorenta tarde já estava indo embora, e em uns quarenta minutos aproximadamente teria que fechar o estabelecimento. A curiosidade falava alto para perguntar ao seu cliente contumaz o que ele levava naquele saco negro e o porquê que o reverenciava pela vigésima ou nonagésima vez sempre que levava o copo de cachaça aos lábios, mas a vergonha a impedia, sabia que o Henrique possuía uma língua bem ferina quando incomodado. Deixa pra lá, pensou D. Marcia, vai ver que não é nada importante e só quer chamar a atenção.
- D. Márcia! (falou o cliente com a voz pastosa) sei que estás querendo me mandar embora, sei que já está na hora e com saudades não me nego partir.
- Que que é isso, seu Henrique. Parece até canção do Bartô Galeno, o senhor é de casa e ficamos até quando o vigia vier avisar, acho que temos ainda uns trinta minutos de lambuja, quer mais uma dose?
- Sim, quero. E quero também um copo de caldinho de feijão preto, ainda tem?
- Vixe homem, o caldo de feijão preto acabou indagorinha, mas tem fava e um pouco de guisado de bode, se quiser, boto uma farinhazinha, uma pimentinha malagueta e fica de primeira.
-Traz então a gororoba, bela viuvinha do meu coração, com todo respeito; eu vou aqui ao mictório e volto já pra tomar a derradeira, e depois, sigo o meu destino.
E veio a derradeira, depois a expulsadeira, a do garçom, do adeus geral, a pé na bunda e nada dele arredar pé do lugar, comeu o guisado de bode com a fava, seguido de dezenas de arrotos, acompanhados de xingamentos ao prefeito, ao governador, ao presidente da república e só parou porque o senhor Acrísio, o vigia do mercado, chegou balançando as chaves e ficou olhando de esgueira para ele e para a proprietária, essa já havia trocado de roupa e se encontrava na ponta do balcão com uma garrafa de cana praticamente vazia em mãos.
- D. Márcia, hora de fechar o barraco! Falou o vigia com firmeza. Que diabo que tem bebo que se despede quinhentas vezes e não vai embora. Pensou o vigia.
-Tudo bem, seu Acrísio, leve o Henrique até a saída que eu saio já com meu filho Edvaldo, ele tá enxugando a louça pra num dar barata, me dê só cinco minutos.
- Tudo bem. Vamos, seu Henrique, outro dia o senhor continua sua festa.
- Vamos sim, amigo, e obrigado querida Márcia, a mais bela viúva da Veneza brasileira, a rainha do maracatu, muito obrigado pelo carinho que tratas esse nobre pernambucano sem futuro, está tudo nos conformes, agora, vou seguir minha noite, pois ninguém é de ferro. Vou dar uma esticada lá no Recife Antigo e dar uma passadinha lá no Roger.
- Homi, vá pra casa, seu Henrique! O senhor já tá que tá!
- Como diria meu amigo Zé da Flauta, vou tomando até a última concha, vou tomar umas no Pina de Copacabana, ouvir radiola de ficha e tomar uma sopa com o meu amigo Roger.
Foi saindo e cantando “cadê Roger? cadê Roger?” D. Marcia persignou-se e acompanhou com o olhar seu cliente sair pela única porta aberta do mercado, em sua mente pedia a Jesus e a Oxum, como toda católica com um pé na umbanda e os dois cotovelos no candomblé, que cuidasse do cliente até sua casa. Deu até vontade de tomar essa famosa sopa do Roger, mas iria deixar pra outro dia, precisava chegar cedo em casa porque ainda tinha uns bordados para fazer no vestido da sua calunga, já o seu vestido de dama do Paço já estava prontinho, e não via a hora de sair desfilando na sua “Nação Maracatu do Baque Virado África Mãe” e se apresentar na noite dos tambores silenciosos.
- Aff, que glória! Pensou D. Marcia, que ficava o ano inteiro pensando nessa noite, desde a concentração na rua estreita do Rosário.
Tudo era incrível, sobretudo o batuque e sua coreografia chegando ao palanque armado em frente a Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, era uma cadência inconfundível, tudo era lindo e perfeito. Quando as batidas do sino da igrejinha anunciavam a meia-noite, silenciavam os tambores, e tudo se transforma numa silenciosa prece coletiva saudando os ancestrais africanos, todas as nações se unem em uma única energia de luz
naquela escuridão, ninguém se move, todos firmam o pensamento em um mundo melhor, sem dor, mais alegria, agradecendo as raízes, saudando os orixás. Até o momento em que silêncio é quebrado ao som de um batuque e um canto de celebração, e isso faz que uma energética força penetre o seu corpo inteiro. Milhares de batuques saúdam o momento, toda a eletricidade espiritual emana da superlotada ruela. A força e o poder de todas as nações reunidas, resultavam numa emoção coletiva aguardada por milhares de afros descendentes e adeptos dos tambores africanos que se concentravam na estreita Rua do Rosário, e essa era a força aguardada por D. Márcia durante todo o ano.
- Salve minha Santa Senhora do Rosário, salve Ogun meu pai de cabeça, salve Nossa Senhora da Guia, salve Oxalá, Iemanjá e Xangô Menino, Salve Jesus e Maria Santíssima! Foi assim com toda a sua fé, numa mixórdia típica do sincretismo brasileiro, que D. Márcia tirou o pensamento da religiosidade e voltou-se para chamar seu filho Edvaldo para irem para casa. Lá fora, uma lua cheia e dourada já espalhava sua luz sobre os fiteiros, prédios, pontes e os notívagos habituais do velho Recife.
No dia seguinte, mal abriram as portas do seu quiosque e lá estava o Henrique meio esbaforido à sua espera.
- Bom dia, seu Henrique. Já de pé em plena oito horas da manhã!
- Bom dia, D. Márcia, a senhora viu um saco que esqueci ontem aqui no seu recinto?
- Vi sim, seu Henrique, não era pó de osso?
- Era sim, D. Marcia, cadê o saco? Nem dormi direito pensando nele.
- Oxi, seu menino! E aquele pó de osso vale ouro, é? (falou rindo enquanto passava uma flanela no balcão).
- A senhora nem imagina quanto... mas, cadê o saco?
- Ah, meu amigo, o meu filho Edvaldo é quem cuida da horta que tenho nos fundos do nosso quintal lá em Paulista, o senhor sabe, né? Tudo aqui é caseiro e natural, as verduras, as galinhas, os bodes, até a fava! Esse é o nosso segredinho (falava cheia de orgulho).
- Sei disso D. Marcia, mas o meu saco, cadê ele?
- Meu menino disse que pó de osso é o melhor estrume do mundo, muito melhor do que bosta de gado ou adubo químico. Hoje, bem cedinho, ele espalhou o pó que estava dentro do seu saco de lixo todinho na nossa horta, mas não se preocupe, seu Henrique, se quiser, eu mando ele ir lá no quiosque da Etienne e pegar outro pó de osso para o senhor, já que faz tanta questão, (fazendo um muxoxo). Lá, ela trabalha com coisas de jardinagem, espere só um pouquinho que eu vou mandar o Edvaldo buscar. Disse isso caminhando até a cozinha do quiosque enquanto colocava o avental.
- Edvaldo, menino, vem já aqui!
- Eita lasqueira, e agora, meu São Cipriano! Chame ele não, D. Marcia! Escuta aqui, tá tudo bem. Me traga uma branquinha por favor pra aguentar esse golpe. Falou Henrique coçando a cabeça com preocupação.
- Então, tá! (gritou em direção ao fundo do estabelecimento) - Pode deixar, Edvaldo, num carece de vir aqui, não. Oxente, seu menino, já vai começar os trabalhos? (pegou uma garrafa de cachaça de cabeça, tira a rolha, derrama uma dose no chão, murmura algo e serve outra dose ao Henrique).
- D. Marcia, obrigado pela branquinha, mas queria lhe pedir um grande favor.
- Fala logo, homem de Deus!
- Eu gostaria que todo dia primeiro de setembro a senhora acendesse uma vela de sete dias na sua horta, de preferência protegida dos ventos.
- Vixe, seu menino, que arrumação é essa agora?
- É que é o dia do aniversário do meu falecido pai que a senhora teve a bem aventurada ação de espalhar o pó dos ossos do infeliz na sua horta.
- Minha Nossa Senhora do Desterro, diga isso não, seu Henrique! Ai, protegei-me Omolu! Vou ter um troço. Edvaldooo! (D.Márcia grita pelo filho com a mão no peito e desmaia por trás do balcão.)
- O que houve? Edvaldo entra esbaforido, corre até a sua mãe e pergunta ao Henrique.
- Foram os ossos do papai. Leva a dose de cana aos lábios, toma tudo de um gole só e coloca uma nota de dois reais sob o copo vazio em cima do balcão, complementando:
- Fique com o troco! Levanta do banco e sai.
Fim
JUNIOR DALBERTO, pseudônimo de Alberto Barros da Rocha Junior, é escritor, dramaturgo, diretor teatral e poeta potiguar. Autor e encenador dos textos infantis: "Um Robô no Mundo da Fantasia" no Rio de Janeiro, "Pinóquio e o Circo" e "A Trilha da Caveira que Ri" em Natal/RN. Escreveu e produziu o espetáculo infantil Titina e a Fada dos Sonhos e o espetáculo adulto A Barca de Caronte. Dirigiu os espetáculos de sua autoria: O Velório da Marquesa Di Fátimo, A Última Gota de Absinto, Borderline e Ventre de Ostra. É premiado com quatro Troféus Evoé - Festival de Teatro Exu/Pernambuco em 2015 por "Borderline". Indicado pelo texto Borderline para a premiação Botequim das Artes no Rio de Janeiro em 2015. Premiado pelo espetáculo Ventre de Ostra como melhor Espetáculo Potiguar de Teatro de 2016 – Troféu Cultura. Publicou “O Teatro Mágico de Junior Dalberto - Coletânea de textos Infantis", "O Teatro Mágico de Junior Dalberto – Coletânea de textos adultos", o livro romance realismo fantástico “Pipa Voada sobre Brancas Dunas” (3ª edição atualizada, revisada- 2106) o livro de contos "Cangaço e o Carcará Sanguinolento" (Prêmio Troféu Cultura 2014 – Destaque Literário Potiguar), o livro de poemas "Leveza Infinita" e O livro de conto "Reféns nos Andes". Dirigiu artisticamente a premiação de música potiguar "Hangar-2103, Hangar-2014, Hangar –2105 e hangar 2016". Representou a cidade de Natal no III Encontro de Escritores da Língua portuguesa – E.E.L.P. Fez a direção cênica da inauguração do Cine Teatro Parnamirim/RN. Integra a Caravana Literária Potiguar.
Saiba mais em: www.junior-dalberto.blogspot.com
jrdalberto2010@hotmail.com
@juniordalbertoreal
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