(Artigo escrito por NAILSON COSTA em 2002 como parte da avaliação na disciplina A Invenção do Nordeste - Pós-Graduação em Identidade Regional, a Questão Nordeste - e avaliado com a nota máxima pelo Prof. Dr. Durval Muniz)
Nordeste: Identidade ou Diferença?
A identidade não é uma coisa fixa. Ela é como uma nuvem no céu que vai formando uma montanha, uma árvore, um pássaro, enfim, ela vai tomando a forma de acordo com a cultura de cada um. A permanência dessas imagens vai depender da autoridade do grupo que as institui. Portanto, mesmo sendo móvel a ideia de identidade, essa pode se perpetuar se a visibilidade e a dizibilidade das imagens que a formam forem trabalhadas regularmente através dos tempos.
A imagem da Região Nordeste foi desenhada no seio da cultura brasileira, fomentada pelas relações políticas, econômicas e sociais.
Com as grandes secas já verificadas no final do século XX, a crise na produção açucareira, etc., alguns intelectuais disseminam a ideia de recorte espacial específico, fazendo reivindicações.
Com o avanço do capitalismo no Centro-Sul, surge a ideia de Nordeste como produto dos interesses políticos, econômicos e sociais de seus grupos dirigentes.
A intenção desses era instituir um recorte espacial onde haveria uma homogeneidade não só no modo de falar, como também no visual e no comportamento, os quais seriam divulgados como produto de um estado absoluto da miséria advinda da seca constante, o que justificaria os constantes envios de verbas. Para construir esse Nordeste, portanto, as heterogeneidades geográfica e humana não seriam interessantes para os grupos dirigentes desse novo recorte, pois contrariavam os seus objetivos.
Algumas instituições são criadas pelo governo central para suavizar as já visíveis disparidades entre o Centro-Sul ascendente e o Norte em franco processo de decadência.
Em 1919, cria-se a IFOCS, inventa-se uma imagem: o Nordeste é filho das secas.
O Departamento Nacional de Obras Contras as Secas surgiu no bojo da estiagem dos primeiros anos do século. A Comissão de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – CODEVSF – é resultante da seca de 1942. O Banco do Nordeste foi criado pela pressão exercida no Nordeste (leia-se: seus grupos dirigentes) durante a estiagem do início dos anos 50. A SUDENE começou a nascer com o relatório – GTDN, criado em 1957 pelo presidente Juscelino Kubistschec. Em dezembro de 1959 foi criada a SUDENE. Todos esses esforços do governo federal para amenizar os desequilíbrios inter-regionais, são frutos da pressão (interesses) exercida pelos grupos dirigentes desse recorte regional, com a finalidade de resolver, não os problemas da região, mas os seus problemas: manterem-se e perpetuarem-se no poder.
A invenção do Nordeste extrapola, entretanto, essas fronteiras do econômico e do político. Ela é reflexo também do discurso subjetivo, do social e do afetivo.
Na literatura, temos a publicação de “A bagaceira”, de José Américo de Almeida, em 1928, a qual costuma ser indicada como marco inicial dessa série de obras. Esse romance conta o drama dos sertanejos e a exploração do povo num sistema social injusto. “O quinze”, de Rachel de Queiroz, obra que a projetou nacionalmente, retoma o tema da seca, que já fora tratado, por exemplo, na obra “Luzia-Homem”, de Domingos Olimpo, dá-lhe maior dimensão social, sem deixar de lado análise psicológica de alguns personagens. “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, surpreende pelo relato objetivo da vida de Fabiano, Sinhá Vitória, dois filhos e a cachorra Baleia, sem horizontes, sem linguagem, sem ambições e exploradas por outros homens, enfim, sem identidade.
Essa mesma literatura nordestina também constrói uma imagem saudosista do Nordeste, através do discurso de negação do novo, do moderno, como percebemos em José Lins do Rego e em Gilberto Freyre que lamentam a perda das características regionais; eles defendem a miscigenação, as estruturas agrárias tradicionais, o litoral açucareiro como espaço ideal. Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, também saudosistas, elegem o sertão algodoeiro e pecuário como espaço-modelo das boas relações sociais.
A literatura nordestina enfoca a miséria, a seca, os problemas sociais (“naturais”) do sertão; mostra, também, as “belezas” da sociedade açucareira, do engenho, das “boas” relações dos patrões e empregados, verificadas, em alguns casos, também no sertão, inventa um Nordeste estratégico e constrói, nas entrelinhas, um discurso político de denúncia da sociedade capitalista moderna.
Na música, Luiz Gonzaga reforça o discurso saudosista freyreano, em que esse espaço aparece como lugar amado e desejado por todos os nordestinos que dele partem. O lugar onde a seca é o único motivo de suas retiradas, e a chuva a grande esperança de sua volta. Gonzaga, ao contrário de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Manuel Bandeira, consegue, brilhante e conscientemente, ser ambíguo em seu discurso, ele transita e sobrevive com sucesso entre o saudoso (o espaço da saudade, o sertanejo, a religiosidade, o gado, os aboios, as vaquejadas, etc.) e o moderno (a mídia, a tecnologia, a industrialização de sua música, as badalações, etc.).
Hoje em dia, o discurso discriminatório de um Nordeste fraco, atrasado e subdesenvolvido está atualíssimo na imprensa do Centro-Sul na medida em que esta sensacionaliza, em busca de audiência, as catástrofes nordestinas, também comuns àquele espaço. Esse discurso reproduz a velha e conhecida imagem de um recorte que destoa do resto do país, das esmolas de campanha fraternais e das muitas verbas federais destinadas àquele “primo pobre”, mendigo, deselegante e sem inteligência e que é a vergonha nacional. Esse discurso favorece ao aparecimento de ideias separatistas, muitas vezes até violentas.
A própria música de protesto, como “O Nordeste Independente”, ou “Nação Nordestina”, brilhantemente interpretadas por Elba Ramalho e Zé Ramalho, respectivamente, reforça a ideia de um espaço diferente. Djavan, um dos maiores compositores da MPB, também deu a sua contribuição para a manutenção dessa identidade do povo nordestino. Veja a letra da música Seca:
A terra se quebrando toda
A fome que humilha a todos
Vida se alimenta de dor
Que pobre povo sem socorro!...
Por que Deus pôs ali
O ser pra ser assim
Sofredor?
Sob a brasa do sol padecer
Do desdém do poder
Fingido.
Sem saber o que é ser feliz
Viver, como se diz:
Dá medo
Apesar de se ter céu azul
O mesmo lá do Sul,
Mesmo Deus.
A fome que humilha a todos
Vida se alimenta de dor
Que pobre povo sem socorro!...
Por que Deus pôs ali
O ser pra ser assim
Sofredor?
Sob a brasa do sol padecer
Do desdém do poder
Fingido.
Sem saber o que é ser feliz
Viver, como se diz:
Dá medo
Apesar de se ter céu azul
O mesmo lá do Sul,
Mesmo Deus.
O filme de Walter Salles, Central do Brasil, grande sucesso internacional, criou em uma americana a seguinte imagem do Brasil: “Ainda bem que não moro no Brasil.” Opinião que imediatamente foi rebatida por um jornalista gaúcho em seu artigo intitulado “Central do Brasil: Imagem do povo brasileiro é a do nordestino carente.” Os filmes “Central do Brasil”, “Eu, tu, eles”, apesar de enfocarem o Nordeste como um lugar de paz, de um povo pacífico e extremamente religioso, reforçam a identidade de um povo atrasado, subserviente, incapaz de lutar pelos seus direitos.
Assim como a arte, o jornalismo reforça essa identidade. É do Correio Brasiliense do dia 12 de dezembro de 2000 a reportagem intitulada Cidadania chega ao sertão a qual fala da ida de um grupo de dez estudantes, participantes do projeto Universidade Solidária, da Universidade de Brasília, coordenada pela professora de Sociologia Alexandrina Abreu dos Santos Alves à cidade de Nova Floresta, na Paraíba. Nessa reportagem, o jornalista Marcelo Abreu situa essa cidade “num pontinho insignificante do mapa”, elege a cidade como “uma das mais pobres do Brasil, onde a televisão ainda não chegou e o povo não sabe o significado de cidadania”. A cidade de Nova Floresta-PB, ao contrário da informação do jornalista, não é uma das mais pobres do Brasil; lá, a maioria das famílias tem um aparelho de TV, o Partido dos Trabalhadores, através do mandato de um vereador seu, desenvolve, desde 1986, um excelente trabalho de conscientização política, através de teatro, palestras, jornais, artes em geral. Até o ensino superior já chegou àquela cidade paraibana. Ao chegar a Nova Floresta, os alunos de Brasília ficaram surpresos quando viram uma cidade totalmente diferente daquela para a qual o seu trabalho fora planejado. A surpresa foi muito maior quando a comunidade florestense convidou a professora e os alunos brasilienses para justificarem aquela fatídica reportagem, que, aliás, “o povo que não sabe o significado de cidadania” descobriu na Internet. Resultado: uma multidão de aproximadamente 2000 (duas mil) pessoas acompanhou, através de um serviço de som colocado à frente da Câmara Municipal, um debate sobre cidadania, e o povo pobre e sem cidadania ensinou o verdadeiro significado dessa palavra aos brasilienses, inclusive até lembrando ao solidário grupo que em Nova Floresta ainda não se queimou índio em praça pública. A professora e os jovens estudantes arrumaram as trouxas e foram embora no outro dia.
A Fundação Nestlé de Cultura coordenou, em 1999, um concurso nacional em que 14200 (quatorze mil e duzentas) escolas públicas e privadas, ensino médio, participaram. A Viagem Nestlé pela Literatura apresentou o seguinte tema: “ Os saberes e sabores do Brasil”, e o qual consistia na produção de um texto literário baseado na leitura das obras “O quinze”, de Rachel de Queiroz, “Um certo Capitão Rodrigo”, de Érico Veríssimo, “Libertinagem”, de Manuel Bandeira e “O grande mentecapto”, de Fernando Sabino. A Escola Estadual Francisco Campos / Dores do Indaiá – MG venceu o concurso com o texto “guia de receitas brasileiras”, o qual fazia referências às regiões do país, e ao Nordeste dedicou o seguinte elogio:
“FAROFA NORDESTINA: Origem: É um prato literário baseado no povo nordestino. Ingredientes: 1 kg de carne seca, uma vida de misérias, 1 lata de água salobra e barrenta, 12 meses de seca intensa, 2 kg de farinha de mandioca, fome, desgraça, tristezas e a força de um povo bravo que ainda não perdeu a esperança e a garra de viver. (Recordações 99 – Viagem Nestlé pela Literatura).
Ao ler esse texto, percebemos que até na escola o discurso outrora construído continua a reforçar a imagem nordestina de um povo sofrido e miserável que desperta sentimentos de peninha.
Assim como a literatura regionalista nordestina, a música popular brasileira, a reportagem do Correio Brasiliense, o concurso literário citado, ainda temos o desprazer de verificarmos a presença atual do discurso da identidade e da diferença deste espaço nordestino.
O Nordeste é uma gestação oriunda em berço do esperma cultural do capitalismo com o óvulo da modernidade. Filho crescido e educado em cultural saudosista, alimentado e abençoado pelos seus grupos sociais dominantes. É, portanto, filho reacionário.
Se identidade não é uma coisa fixa, e se a imagem que se faz de algo é móvel, necessário se faz que olhemos para as nuvens e nelas possamos ver, por entre as montanhas, árvores e pássaros, outros Nordestes, que signifiquem a supressão das clausuras desta grande prisão que são as fronteiras.
MUITO BOM. PARABÉNS!
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