segunda-feira, 4 de agosto de 2014

REFLEXÕES SOBRE UM ANIVERSÁRIO - Renan II Pinheiro


No dia 4 de agosto de 1944, numa manhã em Amsterdam, uma equipe das SD (serviço secreto alemão), entrou à força num prédio da rua Prinsengracht, seguindo as instruções que lhes foram dadas por uma voz feminina num telefonema anônimo. Depois de renderem os funcionários, subiram numa escada, onde, escondido por uma estante, há dois anos funcionava um esconderijo para oito pessoas: três homens maduros (um dos quais um oficial reformado do exército alemão que combatera na I Guerra Mundial), duas senhoras, duas garotas e um rapaz, que receberam voz de prisão e a ordem de entrarem num caminhão, tendo de assistirem calados os oficiais vasculharem suas coisas à procura de jóias e objetos de valor, amealhando essas coisas sem pedir licença e jogando o que não consideravam importante no chão. Depois de algum tempo em Westerbork, foram enviados para outros campos de concentração e, separados aos poucos, submetidos a condições subumanas que eliminaram um a um, exceto o oficial reformado, que, libertado e de volta a Amsterdam, teve de conviver com o que acontecera aos demais, que incluíam sua esposa e suas filhas. Contudo, uma de suas colaboradoras naquela época difícil entregou-lhe os diários de sua caçula, que apanhara da pilha de descartes e guardara sem ler durante meses, e ao lê-los ele se deu conta de quão talentosa e profunda aquela menina de quinze anos era, motivo pelo qual decidiu editá-los e publicá-los. Dois anos depois, “O anexo secreto” foi publicado na Holanda, e aos poucos aquelas histórias misturadas com tiradas espirituosas e reflexões sobre a vida difundiram-se pelo mundo, marcando a vida de milhões de pessoas e inspirando adaptações para rádio, teatro, televisão e cinema, a essa altura com o nome que recebeu quando começou a ser traduzido para outros idiomas: “O Diário de Anne Frank”. Podem me chamar de sentimental, mas escrevo essa pequena memória porque acredito que um aniversário dessa natureza não pode passar despercebido, especialmente num momento como esse, onde pelo menos dois conflitos regionais fundamentados no ódio entre vizinhos ameaçam dividir novamente o mundo, provando que infelizmente muitos ainda sentem necessidade de subjugar aqueles de que discordam. Precisamos resgatar a obra dessa menina que falou tanto sobre o desejo de amar e de ser livre, bem como da necessidade das pessoas (inclusive as consideradas “diferentes”) serem respeitadas e terem paz, mas não pôde dar uma contribuição ainda maior para o mundo porque foi assassinada num campo de concentração, somando-se a tantos judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e até padres mortos nesses locais. E para reforçar o meu desejo de que essa história não se repita, gostaria de transcrever o posfácio que Miep Gies, a colaboradora que salvou seu diário, escreveu para uma biografia a seu respeito lançada em 1998, 12 anos antes de sua própria morte: “Nos últimos cinquenta anos, desde a publicação do diário de Anne Frank, sempre me perguntaram de onde tirei a coragem para ajudar a família Frank. Esta pergunta, formulada às vezes com admiração, às vezes de maneira incrédula, sempre me afetou de forma desagradável. Sim, claro que é preciso coragem para se cumprir o dever humano; claro que é preciso estar disposto a fazer certos sacrifícios. Mas isto vale para muitas situações na vida. Portanto, por que, estou sempre me perguntando, uma pessoa faz uma pergunta dessas? Por que tantas pessoas hesitam em saber se devem ajudar ou não seus semelhantes? Só comecei a compreender aos poucos. A maioria das crianças ouve seus pais dizerem desde pequenas: ‘Se você for muito bom e bem comportado, vai se dar bem na vida’. Portanto, a conclusão inversa seria: se uma pessoa está em dificuldade, então ela deve ter se comportado mal, deve ter cometido um erro grave – simples assim. Cada qual recebe a vida que merece – simples assim. Então, simples assim, se toma a decisão de não intervirmos a favor dessa pessoa, de ‘ficarmos de fora’. Simples assim? Minha vida ensinou melhor. Eu ajudei porque sei a facilidade com que as pessoas ficam numa situação difícil sem necessariamente terem feito algo de errado. Eu nasci em Viena e, no começo da Primeira Guerra Mundial, estava com cinco anos de idade. Minha mãe sempre me assegurou que eu era menina boa, digna de ser amada e que ela estava satisfeita comigo – tanto em casa como na escola. Quando eu tinha nove anos, não tínhamos o suficiente para comer. Ainda me lembro muito bem dessa torturante sensação de fome, aquela dor aguda no estômago, as tonturas desagradáveis contra as quais tinha de lutar. Jamais esquecerei o choque que tive quando meus pais me enviaram para a Holanda, para uma ação de ajuda para crianças necessitadas e famintas. Era um dia de dezembro do ano de 1920, fazia um frio de rachar quando me levaram para o trem, penduraram em meu pescoço um enorme cartaz com um nome estranho, se despediram de mim e me deixaram sozinha – forçados pelas circunstâncias, é claro. Mas eu só compreendi isso muito mais tarde. Eu estava muito abaixo do peso, sofria de tuberculose e me sentia terrivelmente solitária. Por que eu havia merecido estar tão doente e abandonada? Minha mãe me assegurara que eu não tinha feito nada de errado... Portanto, aos 11 anos de idade, tive a experiência da rapidez com que se fica numa situação difícil, de maneira totalmente inocente. Minha experiência me mostrou que o mesmo também era valido para os judeus na Segunda Guerra Mundial. Por isso achei natural ajudar até onde estivesse em meu alcance. Quando tomamos conhecimento, comovidos, de que seis milhões de crianças, mulheres e homens foram mortos, ao se fazer a pergunta ‘por quê’ devemos ter diante dos olhos a indiferença mundial dos concidadãos ‘bem normais’ – a propósito, quase sempre decentes, que trabalham duro e muitas vezes temem a Deus. Claro que é o regime nazista que tem a responsabilidade pelo genocídio; contudo, sem a postura passiva de tantas pessoas (não apenas na Alemanha e na Áustria), que com certeza no fundo são boas pessoas, os bárbaros assassinatos jamais teriam alcançado essa proporção. Quando – coisa que de fato me acontece ainda hoje – pessoas jovens vêm a mim porque não podem acreditar que Hitler assassinou os judeus sem nenhuma razão, receio que essa observação reflete exatamente aquela educação que parte do pressuposto de que tal coisa jamais aconteceria com pessoas inocentes. Então, eu lhes conto sobre Anne Frank e pergunto se porventura supõem que aquela criança, aquela jovem menina fez alguma coisa qualquer que justificasse seu destino cruel. ‘Não, claro que não’, as pessoas respondem, em geral bastante envergonhadas, ‘Anne Frank é inocente’. ‘Exato’, eu acrescento, ‘tão inocente quanto todos os outros seis milhões de judeus’. A vida de Anne – e sua morte – tem valor simbólico para todos aqueles que hoje são submetidos a preconceitos, discriminação e perseguição: responde pela absoluta inocência das vítimas. Gostaria também de aproveitar a publicação de ‘Anne Frank – uma biografia’ para esclarecer um frequente mal-entendido. Sempre dizem que Anne simboliza os seis milhões de vítimas do holocausto. Considero errada essa interpretação. A vida e a morte de Anne são um destino individual. Um destino individual – acontecido seis milhões de vezes. Anne não pode ocupar como representante o lugar desses muitos indivíduos, dos quais os nazistas roubaram a vida. Cada vítima representou sua própria visão de mundo e ideais, cada vítima tinha seu próprio significado pessoal e singular para seus parentes e seu ambiente. Hitler e seus colaboradores tentaram representar exatamente o contrário em seu delírio racial: os judeus como imagens sem rosto do inimigo. Ao mesmo tempo, eles assassinaram seis milhões de indivíduos, seis milhões de destinos individuais. E a maioria das pessoas não quis saber. Anne é apenas uma delas. No entanto, seu destino nos faz compreender a imensa perda que o mundo sofreu com o holocausto. Anne, uma adolescente simples, tocou com seu talento o coração e a razão de milhões de pessoas, enriquecendo sua vida – oxalá tenha ampliado também sua visão. Nós devemos tomar consciência do quanto Anne, do quanto todas as outras vítimas, cada qual à sua maneira, teriam contribuído com nossa sociedade. Não pude salvar a vida de Anne – e me sinto profundamente consternada por isso. No entanto, pude ajudá-la a viver mais dois anos. Ela escreveu seu diário nesses dois anos, o diário que dá esperança a milhões de pessoas no mundo inteiro e que faz um apelo para mais compreensão e respeito. Isto confirma minha convicção de que toda tentativa é melhor do que a inação. Uma tentativa pode fracassar; no caso da inação, o fracasso é garantido. Eu pude salvar o diário de Anne e, desse modo, ajudar a realizar o maior desejo dela: ‘Quero ser de utilidade e alegria para as pessoas que vivem à minha volta, mas que não me conhecem’, Anne escreveu em 25 de março de 1944, mais ou menos um ano antes de sua morte. ‘Quero continuar vivendo, mesmo depois de minha morte’. E em 11 de maio, ela anotou; Você sabe que meu desejo mais querido é um dia me tornar jornalista e mais tarde uma escritora famosa’. Anne continua realmente a viver através de seu diário. Ela responde pela vitória do espírito sobre o mal e a morte. Miep Gies, Amsterdam, janeiro de 1998".

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