(Trecho do
capítulo “Velho Xereta”, do romance “Meia Pata”, que será lançado em maio de
2013)
VELHO XERETA
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Tá indo pra onde, Velho Xereta? – perguntou Sapo ao ver o caçador com jamachim
nas costas, cheio de mantimentos, um terçado pendurado na bainha, o revólver
preso no cinto e uma espingarda de dois canos calibre trinta e dois.
-
Vo-vou buscar ca-casca de qui-quina quina na-na serra do Perdido! – Velho
Xereta parou perto da equipe que se preparava para ir abrir a picada.
-
O seguinte é este Xereta, vai pernoitar por lá véi? – Raul estava curioso, como
todos os outros.
-
Cuidado pra não se tornar o segundo perdido, viu, Seu Xereta! – Sapo tirava uma
brincadeira com o velho – Vai ser difícil chamar a serra de “Perdido Perdido”!
– todos caíram na gargalhada com a piada do sarrista.
-
Na-não vou me-me perder na-não. Ma-mas por via das du-dúvidas, sempre é bom
sa-sair preparado pra andar na mata... – Velho Xereta era um homem experiente.
Não subestimava a floresta, como não superestimava a si próprio.
-
Quer que eu vá com você, Seu Xereta? – Manel se ofereceu para ajudar o caçador
na jornada, também porque não era bom de facão pra abrir picada, e não faria
falta para o resto da equipe. Como sempre trabalhou identificando árvores nos
serviços que apareciam, o terçado nunca fora seu forte.
-
O-o-o que-que é isso rapaz?! – Xereta, irritado, sentiu-se ofendido –
Na-na-na-não preciso de babá não! – todos riram com a bronca que Manel pegou do
caçador – E eu volto ainda ho-hoje. Tão pensando o quê? Que o velho na-não dá
conta do-do recado mais é?!
Velho
Xereta ajeitou o jamachim nas costas e saiu em disparada. Todos ficaram
comentando o quanto Xereta era corajoso. Duro na mata! Bom de terçado e de fome
não morria. No seu jamachim levava sal, açúcar, um pacote de café, um pacote de
sebo de porcão do mato, todos os itens bem embalados. Também fazia parte de sua
bagagem um bule, uma caneca, uma frigideira pequena, um recipiente de couro de
boi com dois litros de água e uma grelha que possuía as dimensões da boroca de
cipó.
O
jamachim que Velho Xereta carregava era de própria confecção. Tinha aprendido
com um índio da etnia Taurepang que ficou morando na comunidade dos
castanheiros por dois anos. O Taurepinga, como todos o chamavam na vila por
beber muita pinga, mostrou-se um ótimo artesão de cipó. O jamachim era firme,
feito sob medida para ficar bem acomodado nas costas do caçador.
Ronaldo
sentiu-se orgulhoso ao ver aquela cena em que seu pai seguia sozinho pra
floresta, assim como todos os presentes exaltando as suas habilidades. Ronaldo
possuía algumas capacidades mais apuradas que seu pai, mas reconhecia nele o
grande professor da arte de sobreviver da floresta. Realmente Xereta era
referência e respeitado pela vida que escolhera.
O
caçador pegou o picadão antigo e seguiu rumo à serra do Perdido. Xereta em
vinte minutos chegava a andar um quilômetro. A previsão era de chegar cerca de
meio dia na base nordeste do morro, pegar uma caça, almoçar, descansar um
pouco, coletar as cascas por volta de cinco e meia, e seis horas retornar para
a sede. Porém, seu objetivo consistia em alcançar toda a equipe no serviço, que
estava realizando abertura de picada, e voltar com eles para a sede. Sabia que,
para cumprirem a meta de trabalho estabelecida pelo Cláudio, teriam que
trabalhar até quando começasse a anoitecer.
Ao
longo do percurso, Xereta tomava água de raízes de imbaúba e cipós d’água.
Quando encontrava um igarapé sem vestígios de que os porcões tivessem “fuçado”,
bebia água usando sua caneca. Aquele trajeto era tão conhecido pelo caçador que
conseguia evitar os barrancos íngremes e a mata mais fechada com desvios, e
assim economizava tempo no percurso sem se desgastar tanto. Pouco antes de
meio-dia havia chegado à base nordeste da serra do Perdido.
Como
era costume do caçador, organizava todo o local onde iria almoçar para depois
ir caçar. Limpava uma área com seu terçado, cortando varas e arvoretas. Juntava
algumas pedras e as organizava em círculo para fazer o fogo. Madeira não era
problema na floresta. Muitos galhos e cascas de árvores serviam para fazer uma
fogueira respeitável.
Enquanto
Xereta arrumava um local seguro para pendurar seu jamachim, percebeu que algo
estava próximo. Olhou a sua volta e ficou em alerta. Sua espingarda estava
encostada em uma pedra uns cinquenta passos de onde se encontrava. De súbito
apareceu uma onça vermelha descendo os pedrais na base da serra, vindo em
direção ao Velho Xereta. O caçador havia se distraído. A distância entre os dois
era de setenta passos. No entanto, a espingarda estava justamente de encontro
com a onça. Xereta não tinha outra opção. Tinha que enfrentar a onça. Deu um
grito o mais forte que pôde. A onça ficou em postura defensiva, deus dois
passos para trás, porém rugiu alto e forte, esticando toda a pele de seu
focinho dando espaço para suas enormes presas. Continuou avançando lentamente
em direção ao caçador que não saia do lugar.
Xereta pegou um galho grande e começou a bater
no chão e nas árvores a sua volta. A onça novamente ficou na posição de defesa,
mas ao invés de dar passos para trás, ela iniciou um trajeto lateral rumo a sua
presa. Xereta percebendo que não tinha mais opção sacou seu revólver e esperou
a aproximação do predador. De nada adiantava atirar nela a mais de quinze
passos. Seria desperdício de munição, e ele possuía apenas seis.
Sem contar que como a sua arma era muito
velha, alguns projéteis poderiam falhar. A onça aumentava o ritmo e se
encontrava a cerca de trinta passos do caçador. Se Velho Xereta estivesse com
sua espingarda, um único tiro seria suficiente para dar cabo do grande felino
naquela distância. Mas não tinha tempo para se lamentar. O revólver tinha que
bastar! Para garantir, sacou o terçado de dezoito polegadas. Lembrou-se que vinte
anos mais jovem, tinha matado uma onça parda com facão. Mas aquela onça estava
muito velha. Esta, a sua frente, tinha o vigor e força de um animal jovem e
saudável.
O
predador estava a vinte passos. Xereta pensou em atirar na esperança de que o
grande felino se assustasse com o estrondo e fugisse. Mas pelo comportamento da
onça, o caçador percebeu que ela nunca tinha sido atirada, ou seja, nunca
tivera contato com ser humano antes. Se a bala não acertasse seria desperdício
e, daquela distância, as chances de acertar um tiro eram poucas. Xereta sabia
que cada projétil era fundamental para garantir sua sobrevivência.
A
onça deu mais dois passos e parou. Estava a dezoito passos. Por um momento
Xereta acreditou que ela tivesse desistido da investida, e para tentar
afugentá-la começou a gritar feito um louco.
-
Ve-venha! Ve-venha! A-a-amaldiçoada! Ve-venha! Tá com medo do ve-velho?!
Ve-venha!
A
onça esturrou de forma ameaçadora, assumiu uma postura ofensiva e avançou ao
encontro de Xereta. O primeiro tiro falhou! O segundo também! A onça estava a
dez passos! Xereta deu três passos para trás enquanto deflagrava mais dois
tiros. Um deles acertou a onça que vacilou, mas o tiro não fora fatal. A onça
estava a cinco passos de Xereta que atirou e falhou! A onça deu o bote. Velho
Xereta saltou para o lado o mais alto que pôde e atirou! O felino trombou nas
pernas de Xereta que foi lançado sem equilíbrio, caindo no chão como um pacote
flácido. A predadora rolou por entre folhas e galhos, e agonizou seus últimos
suspiros. Xereta caiu com as costelas sobre uma pedra pontuda. Não conseguia
respirar.
Ricardo Dantas
Biólogo e escritor
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