quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Sertanejo Segundo Euclides da Cunha



"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava- o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme.

Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeiramente conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias ador- mecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dous terços da existência.

Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.
Vimo-lo neste steeple chase bárbaro.
Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo...

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros...
A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira — estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção, — escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido."

Um comentário:

  1. Gostei muito desse texto...sou fã dele. Grande Euclides da cunha!

    Aluno do colégio Estadual

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