segunda-feira, 21 de julho de 2025

ENTRE VULTOS E VOTOS

 


ENTRE VULTOS E VOTOS


Júlia chegou ao hotel.

— Tem vaga?

— Sim — respondeu a recepcionista. — Prefere com ou sem assombração?

— Hein? Como assim?

— Temos quartos normais e os temáticos. O da freira chorona está em promoção hoje.

Júlia suspirou.

— Tem com espelho que engole pessoas?

— Tem, mas está ocupado por um influenciador que veio gravar susto ao vivo.

— Então fico com a freira mesmo, desde que ela não me peça para segui-la no Instagram.

— Elevador só até o terceiro. Depois, é escada e dor nos joelhos.


Júlia pegou a chave e partiu. No meio do caminho, um gato branco a observava.

— Você deveria ser preto, né? — disse ela, parando no segundo lance.

O bichano justificou:

— Meu colega  Gato Preto trocou o plantão comigo.


Ao chegar ao quarto, deixou a mochila no chão e afundou-se na poltrona, observando a freira chorona sentada na cama. 

— Olha, irmã, se você quer chorar por causa da TPM eterna, senta aqui que eu também tenho história.

Tirou da bolsa uma barra de chocolate.

— Quer um pedaço?

— Isso interfere no jejum espiritual?

— Depende. Você está mais para qual tipo de espírito?

— De porco.

— Então toma.


A luz piscou três vezes. Júlia, por estar acostumada com apagões, nem se moveu. A freira, por outro lado, ergueu os olhos ao teto, num misto de prece e pavor.

Um rangido atravessou o corredor, seguido por passos arrastados e um chiado de rádio antigo.

— Se for alma penada querendo me aterrorizar, está perdendo tempo.


A porta rangeu e um vulto entrou.

— Boa noite. Sou o responsável pelo controle de manifestações do além. Preciso que assine o termo de convivência espectro-humana.

— Isso inclui não gemer depois das dez?

— Inclui, sim, e também proíbe possessões em área comum — respondeu o vulto.

Júlia assinou e ele foi embora.


De repente, um lamento comprido ecoou da parede.


A freira fez o sinal da cruz com as duas mãos; contudo, Júlia apenas ergueu-se e comentou:

— Gemido fraco, sem proposta clara e com vocabulário pobre.

Ouviu-se um suspiro indignado e, logo em seguida, veio a réplica:

— Isso é recalque de quem não sabe modular um agouro.

— Se quiser melhorar sua performance, sugiro ler: Como Assombrar com Coesão e Coerência, volume II. Está disponível em PDF.

— Você vai acabar sendo expulsa.

— Duvido — respondeu Júlia, pedindo comentários detalhados sobre o que acabara de ouvir.

O gemido, com vergonha, sumiu, ficando só o som distante de um ai ai interminável.

A freira olhou para Júlia e perguntou:

— Você não tem medo de nada?

— Até um dia desses eu tinha medo de golpista dissimulado, mas como agora ele está com tornozeleira, fico mais tranquila.


E foi dormir sem medo de ser feliz.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.07.2027 – 15h50min.


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