ENTRE VULTOS E VOTOS
Júlia chegou ao hotel.
— Tem vaga?
— Sim — respondeu a recepcionista. — Prefere com ou sem assombração?
— Hein? Como assim?
— Temos quartos normais e os temáticos. O da freira chorona está em promoção hoje.
Júlia suspirou.
— Tem com espelho que engole pessoas?
— Tem, mas está ocupado por um influenciador que veio gravar susto ao vivo.
— Então fico com a freira mesmo, desde que ela não me peça para segui-la no Instagram.
— Elevador só até o terceiro. Depois, é escada e dor nos joelhos.
Júlia pegou a chave e partiu. No meio do caminho, um gato branco a observava.
— Você deveria ser preto, né? — disse ela, parando no segundo lance.
O bichano justificou:
— Meu colega Gato Preto trocou o plantão comigo.
Ao chegar ao quarto, deixou a mochila no chão e afundou-se na poltrona, observando a freira chorona sentada na cama.
— Olha, irmã, se você quer chorar por causa da TPM eterna, senta aqui que eu também tenho história.
Tirou da bolsa uma barra de chocolate.
— Quer um pedaço?
— Isso interfere no jejum espiritual?
— Depende. Você está mais para qual tipo de espírito?
— De porco.
— Então toma.
A luz piscou três vezes. Júlia, por estar acostumada com apagões, nem se moveu. A freira, por outro lado, ergueu os olhos ao teto, num misto de prece e pavor.
Um rangido atravessou o corredor, seguido por passos arrastados e um chiado de rádio antigo.
— Se for alma penada querendo me aterrorizar, está perdendo tempo.
A porta rangeu e um vulto entrou.
— Boa noite. Sou o responsável pelo controle de manifestações do além. Preciso que assine o termo de convivência espectro-humana.
— Isso inclui não gemer depois das dez?
— Inclui, sim, e também proíbe possessões em área comum — respondeu o vulto.
Júlia assinou e ele foi embora.
De repente, um lamento comprido ecoou da parede.
A freira fez o sinal da cruz com as duas mãos; contudo, Júlia apenas ergueu-se e comentou:
— Gemido fraco, sem proposta clara e com vocabulário pobre.
Ouviu-se um suspiro indignado e, logo em seguida, veio a réplica:
— Isso é recalque de quem não sabe modular um agouro.
— Se quiser melhorar sua performance, sugiro ler: Como Assombrar com Coesão e Coerência, volume II. Está disponível em PDF.
— Você vai acabar sendo expulsa.
— Duvido — respondeu Júlia, pedindo comentários detalhados sobre o que acabara de ouvir.
O gemido, com vergonha, sumiu, ficando só o som distante de um ai ai interminável.
A freira olhou para Júlia e perguntou:
— Você não tem medo de nada?
— Até um dia desses eu tinha medo de golpista dissimulado, mas como agora ele está com tornozeleira, fico mais tranquila.
E foi dormir sem medo de ser feliz.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 21.07.2027 – 15h50min.
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