quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

JALECO DE COBRIR DOR



 JALECO DE COBRIR DOR


Antigamente ele só dormia depois da novela, agora não existe mais isso, já que a novela foi substituída pelas novidades do grupo da família. Estão passando onde?, perguntas são feitas aos que estão viajando. Mandem fotos! 

A mulher dele telefonou pegando-o dormindo, pensou ela, mesmo assim insistiu: Alô!? Estou dormindo, pensou em dizer, mas preferiu fingir estar. 

Mais tarde acordou com o corpo quente. Essa insolação pelo jeito vai durar a semana inteira. À meia-noite passou hidratante lembrando-se da prancha larga com a qual treinou o dia inteiro para aprender a remar em pé. Dorme muito bem por duas horas. Uma parte da noite aproveita para olhar se no chão vai passando algum inseto. Quando dá sorte uma formiga o distrai até morrer esmagada.

Acessa os sites dos hotéis por gostar de se imaginar em férias contínuas. Banho turco, anunciava um estabelecimento para fazer valer o preço de um salário mínimo por diária. Quando será que o trabalhador braçal poderá usufruir disso?, fica a imaginar que nunca.

Abandona os sites e vai até a geladeira. Enche um copo d'água, toma um gole e esquece que precisa se hidratar mais, derramando o resto. Será que está ficando com mal de Alzheimer?

Nessa hora da madrugada percebe que cada dia seu sono vai ficando mais curto, por isso inventa de dormir com um saco de gelo na cabeça. Essa insolação serviu para descobrir como evitar pesadelos, e parece que o gelo exerce essa função muito bem. Adormeceu deixando do lado de fora da cabeça os projetos para serem concluídos, e que se nunca forem não haverá prejuízo algum.

Já fez de tudo e só lhe resta se trancar no lugar que recebe de braços abertos os derrotados. No banheiro, precisa de tempo para desistir de ficar sentado na privada. A paisagem à frente não é nada agradável. Levanta-se para longe da parede branca descascada. Tristeza maior não há. 

Abre a porta que também expressa o som da preguiça: nhêeeeeemmm. Tem por objetivo voltar para a cama e vai pé ante pé. Já cansou de andar apressado para daqui a pouco voltar para a privada, amanhã também, por séculos sem fim, amém! Fica constantemente com mau-humor por ter nascido animal carente de um mictório. 

Deita-se devagar gemendo alto sabendo que não tem ninguém para vir correndo saber onde é a dor. Toma o remédio. Já está cheio deles que só servem para dar lucros aos outros, mesmo assim permanece covarde com medo de abandoná-los.  

Chega ao trabalho. Com tantos problemas psicológicos para resolver, até se admira em alguém acreditar que ele pode salvar vidas. Passa a manhã atendendo no hospital de reabilitação de queimados. Precisou ficar exposto o dia todo ao sol para estudar como se sente um queimado. Percebeu que é como se a pessoa estivesse prisioneira no próprio corpo onde as dores funcionam domando o pensamento. Tentou colocar em prática o uso do mamão, mas o resultado foi só camisas manchadas com a ardência nem dando bolas.

O nariz está todo vermelho e com feridas. O que foi isso doutor?, perguntaram-lhe as candidatas a amantes. Foi uma farra nesse final de semana. E o senhor nem me chamou. Aquela moça está louca para pegar um bucho dele para só assim garantir pensão boa até o filho se formar.

Termina o expediente se sentindo um inútil apesar de ter atendido quarentas vítimas. Tornou-se corriqueiro ver os dramas humanos desfilarem em sua frente sem que os pacientes nem desconfiem que aquele médico exemplar é quem mais precisa de ajuda.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.01.2024 - 01h43min.




2 comentários:

  1. Muito bom, Heraldo Lins. Venho acompanhando seu trabalho há bastante tempo e sempre vc me surpreende. Quando publicar um livro vou ser a primeira a comprar.

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  2. Um conto que que provoca reflexão, oferecendo uma visão perspicaz da condição humana. - Gilberto Cardoso

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