segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

EM BUSCA DAS EXPERIÊNCIAS PERDIDAS

 








EM BUSCA DAS EXPERIÊNCIAS PERDIDAS 


Ainda não perdeu a esperança de um dia usufruir uma vida rodeada de serviçais. Mas o que o fez produzir esse pensamento? Acredita que surgiu desde o momento em que atendeu um aposentado treinado na prática do comando. Mesmo sem dizer qual função exerceu quando na ativa, percebeu de imediato ter ele sido um delegado na hierarquia da segurança pública. A impostação da voz, a falta de paciência e o olhar autoritário estimularam a sensação de estar acima de todos por vários andares. 

Fechou o atendimento pensando se é a função que interfere na personalidade ou se a pessoa vem ao mundo para ser comandado ou comandante. Isso o intrigou, mas não interferiu na obrigação de fechar o setor na hora estipulada pelas regras da repartição, pois precisava encontrar-se com a esposa para assistir ao filme. 

Antigamente achava bacana o veículo que usa, agora o encanto está indo embora toda vez que se depara com os arranhões na lataria. Puxou a porta, e, antes de girar a chave na ignição: estás onde?, perguntou novamente já na fila para comprar os ingressos. 

Enquanto esperava observando a cor laranja da moda nas roupas de quase todas as passantes, sentia-se desconfortável pela diminuição da própria comida imposta pela noção da estética ditadora, a mesma que impõe cores a cada verão. Não é fácil se manter rápido nos movimentos, e isso tem um preço bem maior do que os ingressos que foram comprados na modalidade de meia-entrada exigida pela idade acima de adulto. 

Adentraram às salas, assistiram e saíram satisfeitíssimos pela comédia em cartaz. Muitos risos, mesmo tendo um certo ceticismo quanto a piadas já repetidas por todos, igual a muitos filmes onde um diz "eu te amo" e o outro repete o chavão "eu também te amo." 

Dirige na avenida principal já pensando que irá viajar aleatoriamente até encontrar um hotel que lhe agrade. É um andarilho por vocação, a diferença é que não anda com um saco na cabeça.  Enquanto a esposa compra mantimentos para a semana, cedinho ele se entretém pesquisando as escassas ofertas. 

Mete o pé no acelerador fugindo da geladeira branca, da pia preta, da cama de lençóis desarrumados e do balde de lixo que odeia colocar o conteúdo no outro maior que fica na escadaria. 

Na viagem, entra no modo zen ultrapassando apenas caminhões pesados de cana de açúcar na subida de via dupla, sem se preocupar com o relógio a ditar a hora da chegada. Buracos esperam que ele se aproxime para ficarem posicionando-se exatamente na parte frágil dos pneus estourando-os, só que não foi dessa vez. 

A viagem continua passando por onde passara recentemente. Está ficando freguês de fugir das obrigações do sedentarismo ao qual está submisso. Um posto fiscal na divisa dos Estados não o interrompe. Eu amo esta cidade, leu na bifurcação das estradas em condições favoráveis para se construir lombadas sem precisar imitar as do Estado vizinho onde as crateras, criadas pela falta de manutenção, exercem essa função. 

Bem-vindos à... O portal na entrada da praia não deixa barato que quem teve a iniciativa desse bem-vindo foi um agente público que quebrou o princípio da impessoalidade colocando o seu nome nela. 

Chega ao hotel quatro estrelas que de estrela não tem nada. Um gerente aborrecido, com cavanhaque imitando um bode pai de chiqueiro, o atende dizendo que o quarto reservado já havia sido ocupado e que só restava um no andar de cima. Se estivesse dentro de uma história contada por Edgar Allan Poe, coitado daquela barba de bode, porém tudo bem meu bem, disse a esposa com vocação para conciliadora. 

Posso lhe ajudar? Sim, pode. O branquelo carregou a bagagem como se fosse plumas. Você prática musculação? Sim, às vezes com geladeiras, outras com camas... Meu trabalho exige músculos. Não poderia dizer a verdade, mesmo achando bom criar confusão, pois um murro daquele barbicha seria difícil de neutralizar. 

Na varanda, redes armadas e a desconfiança de que não vai se deitar ali quando as outras estiverem ocupadas, o deixou vexado para arma a sua enquanto estavam vazias.

Na barra do rio, foi convidado a se sentar na sombra de telhas. Está mais frio, ou melhor, menos quente. Traga uma cioba. Hoje só tem cioba de cem. Mas aqui está escrito oitenta. É que a cioba veio maior e hoje comprei mais caro, disse o homem desdentado, barba branca por fazer e um dizer constante "vou vender minha casa para morar no cabaré." 

Um grito estridente foi ouvido parecendo uma sirene. Picolé! O "lé" do picolé era quem fazia o diferencial nas vendas. Comprou dois por cinco em dinheiro. Qual o peixe que o preço verdadeiro está escrito no cardápio? Então traga esse atum de setenta e um coco verde. O coco é com água ou sem água? O velhote era cheio de piadas. 

Faltou energia. E como eu vou pagar? Só é possível em dinheiro vivo, ouvia-se as reclamações das mesas vizinhas e ele se perguntando se existia dinheiro morto. Traga meus trinta e cinco de troco. Na entrada do ambiente, ouviu um não pode estacionar depois das cordas. Só é possível no meio da semana. Então vou aguardar a segunda-feira chegar aí eu boto o carro ali. O rapaz achou graça e ele teve que estacionar debaixo de um coqueiro carregado. E se um cair um em cima? Seria muito azar para um só dia. 

Para chegar do outro lado do rio, cinco por pessoa pagou dez para o passeio. Umas ocas com artesanato feito de pau, quenga de coco, agave etc. Olhou de fora, mas ninguém o convidou a entrar. Os índios, vestindo roupas azuis de homem branco, ficaram calados. É como se houvessem chegado à idade do pau lascado. Só não entrou totalmente no clima porque os veículos quatro por quatro estacionados e os barcos a motor pra lá e pra cá, não deixaram. 

Desse outro lado há restaurantes à moda indígena. Bancos fincados no chão, palha na cobertura, rostos largos e arredondados sérios servindo sem muita pressa. Viu a hora levar uma flechada. Na viagem seguinte do barco, embarcou de volta numa estada de no máximo quinze minutos. 

Alguns bombeiros faziam selfies trajando vermelho e lembrando aos banhistas que o poder público está preocupado em manter a reserva intacta. Voltou para a pousada sacolejando na estrada de barro. Ainda bem que é pertinho. 

Hoje à noite vai ter uma moça da cidade cantando para os hóspedes. Foram os primeiros a chegar na área comum para ouvir a ex-cantora de igreja cantando axé. As notas finais de cada frase musical estendiam-se em vibrato atropelando o ritmo do DJ. Para não ter que aguentar aquele atravessando musical por duas horas, decidiu dançar fingindo estar gostando. 

No café da manhã só se ouvia os comentários. As meninas da cozinha, minhas amigas, disseram que eu estava querendo roubar você da sua esposa, disse a empregada afoita que se propôs a entrar no clima junto ao casal. Aquilo era só uma brincadeira, eu disse a elas, enfatizou a mulher magra acima do prazo de validade. Ele dança demais, elas disseram, continuando o blá blá de quem quer agradar e acrescentou: acho que ficaram querendo fazer o que disseram que eu estava a fim, enfatizou novamente ela quando foi limpar a mesa do casal. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Camaratuba/PB, 14.01.2023 - 09h18min.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”