REALIDADES PSICOLÓGICAS
Chegou ao trabalho numa sexta-feira à tarde. Olhou para dentro de si mesmo e encontrou um ser sem muita alegria, não diria triste, porém um poeta catando os sentimentos para transformá-los em palavras. Volta à noitinha para o sítio em que mora parando em frente às árvores centenárias. Um galo acha que está bem por contar com várias galinhas no terreiro sem saber que o dono planeja levá-lo à panela na próxima manhã.
Um celular, em cima do banco do carro, dita a programação da sua vida. Ligou para a mãe dizendo que não irá visitá-la para não enjoar ainda mais em vê-la com o mesmo discurso desde o tempo em que era menino. Corre atrás do que dizer para ele mesmo colocando a mão na fronte, fecha os olhos e vê uma criança em alto mar montada em sua bóia e logo devorada por tubarões. Muitas perguntas são levantadas e ele permanece criando seus próprios monstros.
Olá, bate à porta alguém que não sabe o que quer da vida. Quem é? Sou eu mesmo, responde a ele próprio fingindo que é outra pessoa. Entra em casa e fala para uma mulher invisível. Cheguei atrasado para o jantar porque peguei um trânsito muito pesado. Não tem problema, meu amado, diz a mulher. A hora que você chegar, sempre estarei lhe esperando. Ele a perdeu em um acidente marítimo há pouco mais de seis meses.
Como estão as crianças? Todas bem demais. Estavam brincando até agora, e quando eu disse que você estava para chegar, correram para o banheiro e já estão no quarto assistindo. Finge também que elas estão vivas. Olá meus amores, papai chegou. Oba! Trouxe meu chocolate? Trouxe para todas as três. Ele mesmo saboreia fingindo ser suas filhas mortas. Hum, como está gostoso esse meio amargo. Depois do jantar, quero passar as lições. Sim, eu já sei contar de um até cem, disse a menor. Muito bem. Agora vamos jantar que sua mãe precisa arrumar a cozinha.
Isso mesmo meninas! Todas devem lavar as mãos. Ele distribui os cinco pratos na mesa, prepara o jantar e serve perguntando e respondendo: quero mais um pouco. Calma que dá para todas. Gosto de pão assado com queijo. Posso pegar mais uma banda? Sim, meu amor. Sua mãe vai assar mais. Querida, um pouco mais de pão. Finge que assa e volta com mais um prato vazio. Senta-se um pouco em cada cadeira fingindo ser cada uma delas. Amanhã teremos ensopado de galo. Esse exercício o ajuda a não apertar o gatilho da espingarda atrás da porta.
Hoje vi suas amiguinhas brincando no parquinho quando fui até lá ver como estavam suas professoras. Falei que vocês haviam faltado porque estavam adoentadas. Ah, papai, amanhã acho que já dá para eu voltar. Gosto muito da escola, disse a outra. Tudo bem, amanhã vocês todas irão retornar. Eu e sua mãe as levaremos. Vai fazer exatamente sete meses que viajamos no transatlântico, lembram-se?, por isso vai ter ensopado de galo!
No início, ele perdia muita comida por cozinhar o mesmo total quando estavam vivas, só que agora só uma colher em cada prato para que possa vivenciar essa sua fantasia.
Ajude a sua mãe a lavar a louça. Ele vai para a pia e fica conversando com a esposa como se fosse a filha maior. Papai está estranho, não é? Acho que é muito trabalho, responde a suposta mãe. É melhor prepararmos uma surpresa para o seu aniversário.
No outro dia ele chega com as alunas imaginárias. Todas as professoras recebem aqueles seres invisíveis como se verdade fosse. O psiquiatra da empresa foi lá e convenceu todo mundo para fingir que nunca houve nenhum acidente. Quem sabe, ele acorde do seu transe depois de alguns anos de tratamento.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 01.12.2023- 16h08min.
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