ASSIM NÃO!

ASSIM NÃO!

Você gosta de bebê? Sim, de preferência malpassado, de forma que a carne ainda venha pingando sangue, com bastante sal, pimenta e cebolinha. Eca! Por que essa cara? Você é canibal. Não, estou falando do bebê da vaca, o bezerro. Ah, tá, tudo bem, assim pode. Do ponto de vista da vaca não, né!? Mas a vaca não fala. Então poderíamos comer os bebês das surdas-mudas, já que também não falam. 

Lá longe, pessoas escutam o diálogo entre aquelas duas pessoas colocadas em celas separadas e escuras depois de terem sofrido escassez de água e alimentos. Nós tínhamos uma quadrilha totalmente equipada e pronta para assaltar qualquer tipo de caixa-forte. 

Do lado de fora daquela prisão, pessoas pagam uma assinatura para sintonizar a rádio que trabalha com escutas exóticas. Meu pai e eu tivemos dois filhos deficientes. Na ala feminina, o programa gravado vai das dez às doze. Se você mexer com minha garota eu te corto de gilete. No andar de baixo, há as arrependidas que promovem o programa do perdão, porém esse quase ninguém escuta. 

A administração da cadeia tenta com isso suprir a escassez de verbas. Estamos no ano 2200, e uma das únicas tendências imutáveis é o gosto pelo bizarro. Já faz parte da cultura desse povo escutar, até no trabalho, aquele programa. É melhor inundarmos, assim eles serão eliminados sem muita despesa. Mas há os reféns. Que se danem! É mais barato sacrificar alguns do que ficar montando guarda sem saber a hora que vai terminar esse conflito. Fico imaginando como será a morte deles. Claro que será por afogamento dentro dos túneis, esperneando-se sem tempo para pedir perdão por terem optado em ser terroristas. Ao fundo, ouvem-se risadas arrepiantes modificadas por uma sonoplastia de alta qualidade. 

Os cidadãos têm acesso a tudo que é produzido pelo governo. Nesta época, não há mais documentos sigilosos ou secretos, e não é à toa que todos andam armados. Filhos assassinam pais com muita frequência, e a culpa é do pai que se deixa matar. 

Quando uma criança nasce com deficiência, é organizado um reality show para tirar os órgãos para doação, ao vivo e sem anestesia. Há até um portal onde se tem acesso a ligações diretamente do preso, caso queira sentir a adrenalina pura de uma ameaça de morte ou coisa do gênero. Vou pegar sua família, amarrar sua esposa e estuprar suas filhas. Os candidatos a esse tipo de conteúdo pagam um pouco mais caro para também ameaçarem numa troca que já houve até ataque cardíaco. É o divertimento para os presos e fantasias realizadas para os cidadãos que se dizem do bem. 

Tudo é feito no mais completo controle de qualidade, salvo alguns deslizes pagos para eliminar o ameaçador. Neste caso, a negociação também é pública e se arrasta por quanto mais tempo, melhor. Detentos que não conseguem amedrontar são deixados de lado, até porque há uma ficha de avaliação a cada telefonema, e se a vítima ficar confortável, zero para o ameaçador. 

O programa sobre fantasias sexuais vai ao ar depois da meia-noite. Vivíamos em uma comunidade com catorze pessoas. Sete mulheres e sete homens. Cada dia havia o rodízio, e assim o sonho de viver na poligamia era realizado. 

Quem tiver aptidão para qualquer um dos lados, anuncia uma voz de barítono, inscreva-se no programa Toque Fogo no Armário. Esse programa tem por objetivo deixar as dúvidas falarem por si só. Muitos diálogos são criados a partir da experiência de cada um, todavia os redatores estão cada dia mais empenhados para suprirem a demanda crescente.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.12.2023 - 14h37min.