terça-feira, 28 de novembro de 2023

VOCAÇÃO ESCRAVIZANTE

 


VOCAÇÃO ESCRAVIZANTE


Um escritor começou a ver suas fontes inspiradoras irem para o brejo. Elas pegaram suas malas e saíram de fininho, pois todo mundo dizia que lá no brejo era onde as coisas aconteciam, inclusive a vaca ainda hoje é famosa por ter ido para lá. 

Ele, para não ver sua clientela de leitores abandonando-o, inventou de escrever só o que estava sentindo, tipo uma dor de dente, tristezas, fome... Lá na frente, deparou-se com um leitor aborrecido que já não estava mais a fim de saber o básico das emoções. Ele queria saber, por exemplo, de onde surgia a fome, a dor... por isso o escritor estava se sentindo um fracassado em não saber explicar. A única coisa que sabia bem era contar as palavras para ver se já bastava. Que pena!, dizia para si mesmo com dó dele próprio. 

Saiu pelo mundo afora tentando esquecer a sua sina de ter que escrever, pois isso estava lhe impedindo de viver plenamente. Depois de um certo tempo fazendo o que vinha fazendo, tudo passou a ser ficção e sua vida real já não mais existia. Aqui e acolá, saía tentando conseguir suportar a carga de continuar falando sem parar. Se ele parasse estava morto, e não queria morrer sem se dar conta que havia morrido de uma doença muito devastadora conhecida por mediocridade aguda. 

A morte ficava a lhe espreitar dizendo que a cada momento de dúvidas, mais um passo era dado em sua direção. Cansado de tanto fugir dela, diminuiu o ritmo para que isso o mantivesse, pelo menos, sobrevivendo. Sua obrigação de vida ou morte fazia-lhe refém de uma página em branco. Olhava para as pessoas ao seu redor com afazeres diversos, e ele só escrevendo. Quando dava uma pausa, ela começava a se aproximar, e para afastá-la, o trabalho tinha que ser redobrado. 

Usou a artimanha da metalinguagem, porém até isso o fez ficar entediado. Pensou em criar nem que fosse histórias mentirosas, e nesse momento a morte ficou danada, pois ele havia encontrado a fonte inspiradora. A mentira na literatura precisava continuar, isso fazia o escritor se tornar vivo, pensava ele sentindo um alívio grande ao chegar a essa conclusão. 

Respirou aliviado e começou a mentir mais ainda. Levantou-se para dar uma folga ao seu assento e foi procurar uma bruxa para ver o que ela tinha para dizer. Ela disse que já estava aposentada e que suas maldades não surtiam tanto efeito como na idade média. Agora o que valia eram os fatos reais com pessoas normais a diminuir sua importância. Saiu dali com vontade de ler o que havia escrito, mas nem isso era-lhe mais permitido. Onde estivesse precisava ficar anotando tudo sem se preocupar onde ia dar. Escrever para viver, e não viver para escrever esse era o seu lema.  

O tempo foi passando e ele anotando cada segundo que conseguia permanecer na tarefa. Tornou-se repetitivo quando a vida lhe mostrou o quanto sem graça ela é. Tomando consciência dessa característica da vida, tentou aprender a misturar o real com o fictício. Um barulho, por menor que ouvisse, era logo registrado; vontade de tomar água, também. Não faltavam assuntos e suas mãos e braços continuavam cansados sem que nada pudesse fazê-lo parar. 

Havia uma proibição em falar sobre a quantidade de palavras escritas, tendo em vista que a cada momento da construção literária tudo se modificava, e essa contagem era o que menos importava para o leitor. Precisava inovar, e para isso contava com suas vontades corporais, ir ao banheiro, alimentar-se e até mentir sobre o próprio suicídio. Teve que dizer que quando chegasse a hora, alugaria um jet ski, colocaria uma pedra na bolsa de costas e ia para o alto mar pipocar seus miolos escapando dos que adoravam realçar virtudes num defunto viciado.   

Tirou os óculos, massageou seu rosto sempre com o pensamento na folha em branco. Quanto mais rabiscava, mais páginas apareciam, no entanto o momento chegou de colocar um ponto final se rendendo a tanta saturação.

Depois do ponto, adormeceu sem pesadelos. Quando acordou, seu cérebro havia sido reiniciado e todas as informações não estavam mais ali, apenas uma vontade enorme de registrar o que pensava, e essa vontade foi a única que não havia sido apagada.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.11.2023 – 14H06min.








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